Bem-vindos de volta ao Canto Cult, o nosso pequeno local para falar mensalmente sobre filmes clássicos e de fora do circuito comercial. Seguindo um pouco a tradição do mês passado, em que escolhemos falar sobre o musical The Rocky Horror Picture Show, em junho resolvemos conversar sobre Blade Runner – O Caçador de Androides, um dos maiores clássicos da ficção científica, e o mais recente escolhido de Hollywood para ganhar um remake/reboot/continuação tardia.
A boa notícia sobre o novo filme é que o diretor Ridley Scott está a bordo, poucos anos depois de “reviver” outra das franquias iniciadas no período clássico de sua filmografia, Alien. Scott deve ficar só na produção, no entanto, entregando a direção para as mãos mais do que capazes de Denis Villeneuve – quem quer que tenha visto Sicario (2015) sabe que o diretor canadense é um talento e tanto, especialmente para o tipo de atmosfera “seca”, “sombria” e “suja” que Blade Runner exige. É uma perspectiva interessante a de vê-lo trazer seu estilo duro e realista para o mundo distópico cyberpunk apresentado no filme de 1982.
Outro bom sinal é que o filme tem reunido um elenco de primeira, que provavelmente não assinaria contrato sem confiança no resultado final. Garantidamente, esse princípio pode falhar, mas uma lista que tem nomes como Ryan Gosling, Robin Wright, Ana de Armas, Sylvia Hoeks, Carla Juri, Mackenzie Davis e Barkhad Abdi, tudo vindo por cima do retorno de Harrison Ford como Rick Deckard, inspira certa confiança. É uma mistura de nomes do cinemão americano com outros de nichos mais independentes e até internacionais, que mostra uma tendência a muitas personagens femininas fortes e, ainda por cima, tridimensionais e inteligentes.
Blade Runner 2, como tem sido informalmente chamado, deve chegar aos cinemas dia 6 de outubro de 2017, o que nos dá bastante tempo para avaliar e reavaliar o legado do filme original, do livro que o inspirou, e de tudo envolvendo sua produção. A legião de seguidores e adoradores que se reuniu em torno desse clássico cult de Scott não mente, e Blade Runner é um marco para o cinema tanto quanto é um marco especificamente para o cinema de ficção científica. E a história de sua produção é tão rica quanto os seus significados e técnicas.
Scott & K. Dick
Apesar de, em muitos sentidos, Ridley Scott ser o verdadeiro progenitor de Blade Runner como um fenômeno cultural, o pai de Rick Deckard de verdade é o escritor de ficção científica Philip K. Dick, autor de uma miríade de clássicos do gênero. K. Dick, que morreu poucos meses antes do lançamento oficial do filme, aos 53 anos, não aprovou ou acompanhou a produção no seu início, ainda em 1977, quando o roteiro de Hampton Fancher começou a ser desenvolvido pelo estúdio. Quem mudou essa maré de desconfiança que o escritor já carregava de longa data contra Hollywood foi justamente Ridley Scott.
O material-base de Blade Runner é a genialmente intitulada novela Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, publicada por K. Dick em 1968, quando ele já era um super-astro do gênero, tendo escrito O Homem do Castelo Alto (recentemente transformado na série The Man in the High Castle, da Amazon) alguns anos antes. Dados biográficos fazem crer que o próprio K. Dick não era muito diferente de seus personagens, sempre paranoicos com um mundo que lhe dá amplas razões para sê-lo. Como uma das inspirações nunca admitidas do movimento cyberpunk, é claro que Philip K. Dick era um homem desconfiado de grandes instituições.
Embora diferente em vários aspectos do escrito original de K. Dick, o filme aparentemente agradou o escritor na medida do possível, com Scott servindo de ponte entre o estúdio e o autor, que se mostrou satisfeito com o segundo rascunho do roteiro, reescrito por David Webbs People, e confessou que a cena com efeitos especiais não-concluídos que Scott exibiu para ele pouco antes de sua morte era “exatamente como eu havia imaginado esse mundo”. Puristas da obra de K. Dick protestam até hoje, como eles costumam fazer nos casos de múltiplas outras adaptações consideradas “infiéis”, mas é interessante ver como envelheceram bem as duas versões da mesma história – e isso é essencialmente pelo que elas tem em comum.
Tanto o livro de K. Dick quanto o filme escrito por Fancher entravam no inconsciente de uma nação aterrorizada pela Guerra Fria, que temia um ataque nuclear que sempre foi muito mais possível na propaganda governamental do que no mundo real. Expressar ansiedades sobre o futuro da sociedade não era algo novo para a ficção científica, nem a literária nem a cinematográfica, mas introduzir o medo e a caça aos androides, esses engenhosos não-humanos que podem muito bem se passarem por um e nos “destruírem” por dentro, é uma forma engenhosa de refletir o medo da infiltração do comunismo no mundo ocidental.
Ser (humano) ou não ser
Rick Deckard é um replicante? Não só a legião de fãs do filme se divide acerca disso, como também os próprios envolvidos na produção – mais notoriamente, Ridley Scott e Harrison Ford, diretor e astro, que tiveram vários conflitos durante os quatro meses de filmagens. Scott queria fazer um filme que deixasse implícito que Deckard era um dos replicantes, os androides idênticos a humanos, que ele mesmo estava caçando. As evidências existem em abundância, desde uma discordância de números no começo até os esquisitos sonhos e possíveis “memórias implantadas” de Deckard.
No entanto, nem o estúdio nem Harrison Ford concordavam com essa visão, que acabou prevalecendo no corte do diretor lançado nas edições comemorativas de 20 e 30 anos do filme, mas que nunca foi explicitamente confirmada como canônica. Ford reportadamente lutou contra as direções de Scott de interpretar Deckard como um replicante que acreditava ser humano, e o estúdio obrigou tanto o ator a gravar quanto o diretor a incluir em seu filme uma narração em voice-over que simplesmente não deveria estar lá. A gravação mastiga a história e é escrita em estilo gritantemente diferente do restante do roteiro de Fancher e Peoples.
Embora Ford e Scott tenham feito as pazes mais tarde e falem com gentileza um sobre o outro hoje em dia em entrevistas, ambos mantém que a inclusão da narração não foi uma decisão criativa, e sim uma interferência do estúdio sobre Blade Runner. “Havíamos concordado em fazer o filme sem a narração. Eu achei que o filme funcionava bem sem ela. Logo depois de finalizarmos, no entanto, tive que passar horas gravando essas mesmas narrações, que não representavam nem os meus interesses nem os do diretor. Eu esperneei e reclamei muito na época”, lembrou Ford em uma entrevista recente.
A verdade é que Rick Deckard ser um replicante, mais do que sentido lógico com as pistas deixadas pela trama, faria muito sentido temático para Blade Runner. A ameaça invisível daquilo que não é exatamente como nós, mas vive disfarçado entre nós, se materializa de maneira ainda mais “assustadora” quando o próprio herói, o estereótipo de homem honrado americano (que é incansavelmente desconstruído durante o filme, diga-se), se rebela e foge com uma replicante, além de provavelmente ser um deles também. É como uma conversão de ideais e um exercício de empatia que parece nos dizer: “Eles não são uma ameaça. Eles são você”.
Roy Batty estava certo
Note que o “vilão” na legenda da foto está entre aspas, porque Roy Batty não é nenhum vilão. Um anti-herói, talvez. Perseguido e tratado como propriedade por seus criadores, mas ironicamente dotado de uma consciência e uma memória falsa na qual escorar sua “humanidade”, Batty é um produto, um serviço, um oprimido se voltando contra o opressor. A ganância humana de clamar propriedade sobre uma criação que ganhou consciência provoca um desejo de vingança que é impossível não classificar como justificado – sob a luz da contemporaneidade, que os visionários Scott e K. Dick lançaram mesmo 30 e tantos anos atrás, Roy Batty não é um vilão, e sim um revolucionário.
E talvez seja por isso que sua morte doa tanto na inesquecível cena final do filme, em que Batty encara um ferido Rick Deckard e deixa sair um dos monólogos mais espetaculares do cinema, uma lamentação de memórias perdidas e da fugacidade da vida humana que ele tanto quis experimentar. Uma declamação da própria insignificância, e mesmo assim da liberdade que encontrou nela. Aquele homem rejeitado, caçado, pintado como maligno, morre na certeza de ter buscado o que sempre quis, e ter se maravilhado na mesquinharia que isso significava, quando conseguiu. Não importa o que façamos, tudo se perde no final – somos só lágrimas na chuva.
Na espetacular atuação de Hauer, um ator veterano que merecia destino muito melhor do que os filmes B que anda fazendo no momento, na trilha-sonora inesquecível do compositor new age Vangelis, na direção focada e fascinada de Scott, na câmera do diretor de fotografia Jordan Cronenweth, tão hipnotizada pela figura de Batty em meio à chuva quanto o espectador, essa cena final garantiu para Blade Runner um lugar indelével na história do cinema. É um daqueles momentos mágicos dos quais, só de lembrar, o espectador é transportado para a primeira vez que o viu, e o quanto aquela experiência mudou sua visão sobre a vida, sobre a discriminação, e especialmente sobre o cinema.
É aquela velha história: somos todos finitos, mas a arte é eterna. Como obra, como história e como ficção, Blade Runner é muito mais do que lágrimas na chuva – é uma tempestade.