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Canto Cult #4 | Maior e melhor: Ben-Hur e a história do épico hollywoodiano

Em 4 de abril de 1960, Ben-Hur fez história. Em uma cerimônia realizada no teatro da RKO em Hollywood, o filme dirigido por William Wyler, baseado na obra épica passada nos tempos do império romano, levou 11 estatuetas do Oscar para casa, estilhaçando o recorde anterior (de Gigi, em 1959, com nove vitórias) e estabelecendo um novo que persiste mesmo com a insistência de Titanic e O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, que também levaram 11 cada. Ben-Hur levou seus 11 Oscar a partir de 12 indicações – ou seja, perdeu só a de Melhor Roteiro Adaptado.

A excelência da produção de monumentais 3 horas e 32 minutos, com uma das cenas de ação mais celebradas da história do cinema em seu clímax (a corrida de bigas), serviria ironicamente como o prefácio de uma decadência para o formato do épico hollywoodiano – embriagados pelo sucesso espetacular de Ben-Hur, que ainda fez algo em torno de US$848 milhões de dólares ao redor do mundo na bilheteria (ajustando-se para a inflação dos últimos 50 e tantos anos, claro), levou uma infinidade de estúdios a tentarem seus próprios épicos, e foi aí que a coisa começou a degringolar.

O novo Ben-Hur, de 2016
O novo Ben-Hur, de 2016

Pois parece que Hollywood não aprendeu nada no último meio século. Se na época o erro foi tentar replicar Ben-Hur, em 2016 o erro foi tentar refazê-lo. Pior, refazê-lo em uma versão considerada mais “digerível” para o público médio – com apenas 2 horas de duração, um diretor de ação estilizada (Timur Bekmambetov, de O Procurado) e uma campanha de marketing focada diretamente na corrida de bigas “selvagem” da nova versão. Hollywood não entendeu que Ben-Hur foi Ben-Hur porque era maior que a vida, espetacular, gigantesco, megalomaníaco. Tentar diminuí-lo para caber na mesquinharia das ambições financeiras de um estúdio nunca ia funcionar.

Dito e feito. Com uma estreia medíocre nos EUA e uma performance não muito animadora no resto do mundo, o novo Ben-Hur de espetacular só tem mesmo o tremendo naufrágio de bilheteria que vai se tornar. A recepção crítica não foi muito melhor – com uma média 38/100 no Metacritic, o jornalista Todd McCarthy (The Hollywood Reporter) não poupou palavras para o filme: “Equivocado, diminuído e abismalmente mal feito de todas as formas, esse novo Ben-Hur vai ganhar a distinção de ser o primeiro Ben-Hur a fracassar”. Para entender o porquê Ben-Hur não se conectou com  o público, no entanto, vale olhar para a história do épico hollywoodiano.

Cecil B. DeMille nos bastidores de Os Dez Mandamentos (1956)
Cecil B. DeMille nos bastidores de Os Dez Mandamentos (1956)

Mr. DeMille, estou pronta para o meu close-up

Não dá para dizer que Cecil B. DeMille inventou o épico de capa-e-espada, mas o famoso produtor/diretor/roteirista certamente teve uma mão forte para moldar o que entendemos pelo gênero. Nascido em Massachussetts, nos EUA, ainda no século XIX (12 de agosto de 1881), DeMille fez seus filmes mais famosos no final da vida, pouco antes de falecer aos 77 anos (em 21 de janeiro de 1959). O mais notável deles, talvez, seja Os Dez Mandamentos, a versão de 1956 – vale notar o ano porque o próprio DeMille havia feito uma versão anterior da história bíblica, em 1923.

DeMille era, e isso dá para notar apenas olhando para seus filmes, a epítome do produtor megalomaníaco de Hollywood – fica claro assistindo a Os Dez Mandamentos que DeMille só refez seu próprio filme porque sabia que, 30 anos depois, poderia torna-lo ainda mais espetacular. Recém-saído da vitória no Oscar de Melhor Filme por O Maior Espetáculo da Terra (1952), outro tipo de épico, DeMille montou cenários e definiu logísticas de produção que simplesmente não existiam antes em Hollywood, e elevou o que se entende pelo termo blockbuster, muito antes de Tubarão, de Steven Spielberg, definir o “arrasa quarteirão de verão”. Em bilheteria com inflação ajustada, Os Dez Mandamentos fez mais de US$1 bilhão.

Grandioso set de Intolerância (1916), de D.W. Griffith
Grandioso set de Intolerância (1916), de D.W. Griffith

Quando digo que não dá para atribuir à DeMille a criação do épico hollywoodiano é porque a ambição grandiosa com a arte cinematográfica está no DNA da produção americana desde os primórdios, com gente como D.W. Griffith. Infame pelos tons racistas descarados de seu O Nascimento de Uma Nação (1915), Griffith pode ter demonstrado uma face monstruosa em sua ideologia, mas cinematograficamente deve-se a ele a expansão de tantas técnicas de câmera, edição, montagem e direção quanto se pode contar. Filmes como o monumental Intolerância (1916), de 2 horas e 43 minutos de duração, pretendido como uma “resposta” as acusações de racismo, moldaram o que chamamos de épico hoje em dia.

É uma herança infeliz para ter, e uma que ainda ecoa na Hollywood de hoje, mas olhar para as técnicas e o senso de grandiosidade de filmes como Órfãs da Tempestade (1921) e Horizonte Sombrio (1920) e refletir sobre a forma como essas evoluções incentivadas por Griffith possibilitaram tantas obras com mensagens mais positivas e progressistas é satisfatório, de certa forma. No entanto, vale refletir o porquê da tradição do épico de capa-e-espada estar tão enraizada em uma ideologia conservadora, e como isso afeta a maioria dos exemplares atuais do gênero, incluindo o protagonismo masculino na maioria deles e a prevalência de histórias religiosas cristãs.

Elizabeth Taylor no famosamente fracassado Cleópatra (1963)
Elizabeth Taylor no famosamente fracassado Cleópatra (1963)

Desperdícios homéricos

Como discutimos aí em cima, Ben-Hur veio apenas três anos depois de Os Dez Mandamentos, que se tornaria o filme derradeiro da carreira de Cecil B. DeMille. A vitória em todos os sentidos do filme (comercialmente e artisticamente) atacou a sede de dinheiro de uma Hollywood que já naquela época buscava se aproveitar das tendências do público. De forma não muito diferente da que vemos acontecer hoje com os super-heróis, épicos de capa-e-espada multiplicaram-se nos anos seguintes – e a maioria afundou nas bilheterias tão espetacularmente quanto o Ben-Hur de 2016.

Coloque nesse mesmo saco tanto uma obra-prima como Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, quanto filmes mais esquecidos como O Rei dos Reis (1961), El Cid (1961), Barrabás (1961), A Queda do Império Romano (1964), A Maior História de Todos os Tempos (1965) e A Bíblia (1966). O filme que acabou simbolizando todas as falhas desse sistema de produção em série, no entanto, acabou sendo Cleópatra (1963), uma produção de orçamento famosamente estourado, e que abraçava talvez um pouco mais do que conseguia em suas 3 horas e 12 minutos. Mesmo com quase US$600 milhões nas bilheterias, o filme mal recuperou seu custo.

Colin Farrell em Alexandre (2004)
Colin Farrell em Alexandre (2004)

E quando dizemos que Hollywood não aprende, não estamos brincando: quando Ridley Scott miraculosamente fez outro épico de capa-e-espada que ganhou o respeito da Academia (5 Oscar) e do público (US$500 milhões ao redor do mundo), a terra do cinema caiu novamente em um padrão de tentar replicar o sucesso. Até quando Scott resolveu voltar ao gênero, em Cruzada (2005), os estúdios retalharam o trabalho mais conceitual do diretor para vender o filme como um novo Gladiador.

São dessa época filmes atrozes como Alexandre (2004), de Oliver Stone, e Rei Arthur (2004), de Antoine Fuqua. Até os mais decentes, como Tróia (2004), empalidecem se comparado ao filme que criou a mania da vez (Gladiador) ou aos seus precursores de décadas atrás. É um fenômeno curioso em que as produções de 1950 ou 1960 parecem mais impressionantes hoje em dia do que aquelas realizadas meros 10 anos atrás. Tem a ver, um pouco, com a troca dos efeitos práticos pelo CGI, mas não é só isso – é possível fazer um épico com alma via CGI, vide todos os O Senhor dos Anéis, Hollywood só não está interessada o bastante para fazê-lo.

Russell Crowe em Gladiador (2000)
Russell Crowe em Gladiador (2000)

Data de validade

O tempo de Ben-Hur, Cleópatra, Spartacus e Os Dez Mandamentos passou por um motivo – no correr dos anos, Hollywood entrou no jogo mais perigoso que qualquer indústria pode entrar: o de precisar superar a si mesma sempre. Tecnologia após tecnologia, blockbuster após blockbuster, a terra do cinema quer bater recordes e alcançar mais alto a cada ano, e o jogo cínico de criar mais produtos espelhados naquela que fez sucesso tirou um pouco do trabalho artesanal que ia à confecção de filmes como Ben-Hur.

Eles são impressionantes ainda hoje pela monumental dificuldade que devem ter apresentado aos seus realizadores, pelo cuidado narrativo e pela pura escala de tudo o que faziam. O novo Ben-Hur parece mais um blockbuster lotado de CGI para contar uma história que já foi ouvida pelo menos mil vezes antes, no cinema, na TV, no teatro, na literatura – é só mais uma adaptação, mais um remake, mais uma produção monumentalmente cara. Ben-Hur, o de 1959, foi especial porque foi único. Tentar recriar essa magia e esse aspecto de “filme-evento” em uma época em que blockbusters viraram hábito de consumo, e não acontecimentos especiais, não só é inútil. É patético.

Nossa forma de consumo mudou, Hollywood, muito por sua culpa. Mude com ela, ou continue perdendo dinheiro.

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