Dias atrás a notícia que Shonda Rhimes, famosa criadora de séries (entre elas Grey’s Anatomy e Scandal), tinha assinado com a Netflix ganhou repercussão. Não é de hoje que a empresa demonstra o desejo de reunir os melhores profissionais para comandar suas produções originais, sendo a grande pauta do serviço de streaming há um tempo. Nesse mesmo sentido, Desenrolados (Disjointed, no original) marca a estreia de Chuck Lore, responsável por Two and a Half Men e The Big Bang Theory, agora focando toda sua energia cômica ao dia a dia de uma loja que vende maconha medicinal, ou quase isso.
A série surge de uma espécie de radicalização caso o sistema medicinal de consumo de maconha, que começa a ser implementado em alguns estados dos EUA, tome um rumo totalmente estranho. A série foca em Ruth (Kathy Bates), uma lendária ativista pró-legalização que constrói seu dispensário em Los Angeles. Ali trabalham seu filho Travis recém-graduado em administração, cheio de ideias para melhorar os negócios da mãe; o segurança Carter, um veterano de guerra traumatizado; as atendentes Olivia e Jenny; além do hippie cultivador de erva Pete. Assim, os dez primeiros episódios giram em torno das aventuras desse grupo nessa nova empreitada.
Nessa narrativa fica claro a liberdade criativa que a Netflix deu a Lore, aqui dividindo a criação da obra junto com David Javerbaum. Talvez em nenhuma outra série do famoso showrunner houve tantas piadas para maiores, abordagens adultas e um humor tão escrachado e nem um pouco polido. O que se vê aqui é um humor sem limites, acertando algumas vezes, errando em outra. Todavia sempre mostrando algo que não poderia estar no horário nobre de algum canal de séries na TV. Desenrolados é uma espécie de Cheech e Chong acendendo um baseado junto com os Friends, e o resultado é um tanto quanto inesperado.
Diferente dos maiores sucessos da Netflix no quesito comédia, Desenrolados é uma típica sitcom, com aqueles ambientes claramente realizados em estúdio, com aquela pouca variedade de ângulos de câmera, com o abuso de closes, fundamentado basicamente pelas falas e com as características risadas ao fundo na trilha sonora. Se isso tem certa ironia, como se comentasse que o próximo ponto de encontro de um seriado americano pode muito bem ser um local onde se vende maconha. Por outro lado há um apoio num tipo de abordagem que já não funciona mais tão bem, que demonstra ser um humor que se perde e principalmente mostra cansaço. O formato hegemônico da comédia americana com episódios menos conectados, e situações cômicas dentro de poucos ambientes e prevalecendo a dinâmica dos atores parece desgastado, e aqui fundamentalmente não funciona por completo.
Por outro lado, a série demonstra uma tentativa de seus realizadores a buscarem novas formas para contar sua história. Nesse sentido duas estratégias chamam atenção, a primeira é a constante filmagem que imita um canal de YouTube, tentando incorporar um registro atual àquela narrativa fundamentada por preceitos mais antigos da comédia televisiva. Ainda que muitas vezes esse registro só parece uma filmagem em alta definição com layouts simulando a plataforma de vídeo, por outro lado aquilo cria situações cômicas, como o canal de dois frequentadores da loja, sempre sob efeito da droga, algo que contamina o canal dos dois.
As outras intervenções na linguagem são ainda mais inteligentes, por exemplo, quando Desenrolados insere no meio dos episódios esquetes que simulam como seriam os comerciais televisivos caso a maconha já estivesse legalizada, levando tanto uma ideia de consumo quanto a publicidade em geral a uma ridicularização total. Outra técnica bastante interessante é quando a série parte para uma viagem ao interior do segurança Carte – algo que ocorre em todo episódio, nesses momentos há a intervenção de uma animação que narra o que aquele homem já viveu e nunca contou para ninguém. Como se cada episódio tivesse um curta em desenhos super elaborados sobre esse personagem. Com certeza os momentos mais interessantes de Desenrolados.
Se na série há algo tão potente como Carter e seus traumas, a série troca esse interesse por uma gama de figuras e situações estereotipadas, onde todos na série sempre estão chapados, e por isso realizando os atos mais toscos possíveis. Desajustados reafirma visões retrógradas sobre o uso da maconha, por exemplo, a constante amnésia de todos naquela narrativa, ou fato da maconha estar associada com pessoas que não almejam nada de suas próprias vidas. Algo que nunca é descontruído ou minimamente refletido, mas que parece apenas uma eterna ridicularização de um grupo e de algumas práticas políticas e sociais que começam a surgir sobre esse tema.
O humor escrachado sempre relacionado a esses estereótipos só funciona quando a série leva tudo isso para um non sense absurdo com cenas e piadas onde não se busca nenhuma conexão com a realidade. Como a relação afetiva entre Pete e suas plantas. Desenrolados é uma série de momentos, que às vezes surgem com um forte humor, mas não sustenta a série como um todo. O episódio em que Ruth e seu filho vão para um velório de um ativista é hilário, mas uma série não se faz de momentos isolados.
Se Cheech e Chong, homenageados ao longo da série, foram importantes por fazer comédia com algo que ainda era tabu, agora esse tipo de humor relacionado a maconha e seus usuários só parece fora de moda, fazendo de Desenrolados uma série que nasce datada. Nem sempre liberdade criativa faz com que realizadores concebam grandes obras, esse é o caso de Chuck Lore e seu Desenrolados.