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Depois de Lexa: O que mudou (e não mudou) na jornada das personagens lésbicas da TV

Entre muitos outros marcos anteriores, a história da representatividade LGBT como um todo, e lésbica especialmente, na televisão americana, pode se dividir entre antes e depois de 3 de março de 2016, quando o episódio “Thirteen” (3×07) foi ao ar na CW pela primeira vez – e quando (spoilers a seguir, se é que o aviso ainda vale depois de tanto tempo) a personagem Lexa, interpretada por Alycia Debnam-Carey, foi morta por uma bala que era destinada à protagonista da série (e sua amante recém-consumada), Clarke – relembre tudo no artigo que o Observatório fez na época.

A revolta do grupo de fãs da série imediatamente após a morte da personagem, seus protestos contra o criador e showrunner, Jason Rotherberg, e a percebida “epidemia” de mortes de personagens lésbicas pouco antes e depois de Lexa, gerou meses de conversas quentes sobre um dos clichés mais conspícuos e desprezíveis da ficção. Ele atende pelo nome de bury your gays (literalmente, “enterre seus gays”), e se refere ao caminho frequentemente tomado por contadores de história (héteros, em sua maioria) na hora de retratar personagens LGBT na ficção – fazê-los morrerem em acidentes que podem ser lidos como “punições” para suas inclinações sexuais.

Para entender o bury your gays, a revolta em torno de Lexa e o que veio depois, quase dois anos passados do fatídico episódio de The 100, é preciso entender o impacto que a morte de uma personagem lésbica causa no público. “Eu poderia citar inúmeras personagens lésbicas que eu amava e morreram (especialmente por bala perdida), mas nunca senti uma conexão tão forte por um personagem fictício como senti pela Lexa. E sua morte me afetou bastante, me passou uma mensagem muito negativa. Ali eles estavam dizendo que o amor é fraqueza, que mulheres LGBT não podem ser felizes. Se você se importa com as pessoas e tenta trazer a paz, as pessoas se viram contra você”, me diz Ananda Amenta, 25 anos, auxiliar administrativa no Rio de Janeiro.

Lexa em sua aparição no episódio final da 3ª temporada de The 100
Lexa em sua aparição no episódio final da 3ª temporada de The 100

A ferida dói mais ainda porque Rothenberg, naquela que pode ser a decisão de marketing mais equivocada da história, tentou “enganar” os fãs sobre o destino de Lexa na série. “Ele postou fotos da season finale e chamou os fãs para assistirem as gravações desse último episódio nas ruas de Vancouver, só para dar a entender que ela estaria viva no último episódio, mas era só uma versão ‘do além’ da Lexa. Todos foram pegos, mais uma vez, no famoso queerbaiting, que é uma doença em Hollywood”, conta a Ananda.

Pausa para glossário: queerbaiting é a prática de atrair o público LGBT com a promessa de uma rara representação na mídia (seja TV ou cinema), apenas para descumprir essa promessa, seja deixando a tal sexualidade do personagem subentendida (olá, Thor: Ragnarok), ou mesmo “transformando-o” em um personagem heterossexual (tudo bem, Harry Potter e a Criança Amaldiçoada?). A mídia mainstream pratica queerbaiting sem hesitação porque a comunidade LGBT está acostumada a se esconder nas entrelinhas e no subtexto. “A gente se contenta com qualquer migalha de representatividade que derem. Eles esquecem que eles criam a série para o público e é esse mesmo público que se decepciona e sofre com a falta de representatividade”, define a Ananda.

“Os showrunners afirmam que não estão encerrando o ciclo de determinada personagem lésbica com morte da mesma por preconceito, mas é sim, uma vez que os produtores sabem da lealdade da comunidade LGBT por um personagem”, diz ainda minha entrevistada. “Gostaria de acrescentar que a questão não é que nenhum personagem LGBT possa morrer, mas sim que nós precisamos de uma visibilidade digna e justa. Nós não somos descartáveis como lixo. Nós somos importantes, e as pessoas precisam ver isso”. A briga aqui é por ter as histórias de pessoas LGBT contadas, em toda a sua diversidade.

Wendy em Mindhunter, uma das personagens lésbicas de maior destaque do último ano (mas não um bom exemplo de representatividade)

Menos pode ser mais

Na temporada 2015-2016 de séries de TV, aquela que vitimou Lexa em The 100, 33 personagens lésbicas foram mortas, seja em The Walking Dead (Denise) ou Empire (o power couple Mimi Rose/Denise), mas nenhuma delas causou comoção como a personagem de Debnam-Carey na ficção pós-apocalíptica da CW. A série, que já finalizou sua quarta temporada, nunca se recuperou do baque, e desde então perdeu mais de um terço de sua audiência – o episódio da morte de Lexa (“Thirteen”, 3×07) foi visto por 1.4 milhões de espectadores, enquanto o mais recente da série (“Praimfaya”, 4×13) reuniu 900 mil de americanos na frente da TV.

Esse êxodo em massa de audiência em uma série que, antes, era vista como uma “queridinha” da TV popular adolescente, assustou os produtores americanos. Na temporada 2016-2017, 19 personagens lésbicas morreram nas séries de todas as plataformas, uma queda especialmente significativa se levarmos em consideração que, nessa mesma temporada, a TV americana teve mais produções originais do que nunca (o número é medido anualmente, mas deve ultrapassar 500 temporadas de séries produzidas em 2017). Os dados são do site LGBT Fans Deserve Better.

Enquanto isso, os fãs fizeram muito mais do que abandonar The 100. Alguns escreveram história em quadrinhos, contos, livros e outros pedaços de arte dando ao casal um final feliz que os produtores da série não conseguiram concretizar. Nos EUA, outdoors e outras campanhas mobilizaram os fãs para doarem para o The Trevor Project, que lida com questões urgentes da comunidade LGBT. Também por lá, mais especificamente em Las Vegas, surgiu a Clexa Con (batizada com o “nome de ship” do casal Clarke + Lexa), que celebra personagens LGBT e os atores e criadores que os retratam com dignidade. A 2ª edição acontece entre 4 e 9 de abril de 2018.

Parece arrogância continuar reclamando nesse cenário, mas a verdade é que foi reclamando que chegamos aqui. “É muito importante mostrar que estamos insatisfeitos com algo. Mostrar que merecemos coisa melhor e que, se não melhorar, nós vamos continuar fazendo barulho para o mundo inteiro ver o que está errado até que aquilo seja consertado”, define a Ananda.

Nicole Haught e Waverly Earp, casal da série Wynonna Earp

Desde The 100, alguns showrunners, como Emily Andras (Wynonna Earp) prometeram não matar suas personagens lésbicas, escolhendo contar suas histórias diligentemente ao invés disso.

Exemplos ruins continuam não faltando, no entanto. Personagens cuja sexualidade mantém-se nas entrelinhas são muitas, da Barb de Stranger Things à Elsie de Westworld (ambas, inclusive, supostamente mortas nas temporadas de estreia de suas séries); narrativas de opressão, violência e personagens amedrontados que continuam “no armário” para não sofrerem esse mesmo destino (só pensar em Wendy, de Mindhunter) são muito mais frequentes do que mulheres lésbicas orgulhosas e desafiadoras, que encontram forma de lidar com os preconceitos; a narrativa da morte da personagem lésbica como “punição” por sua sexualidade continua em voga, mesmo que seja usada menos frequentemente – vide a Helen, de Masters of Sex.

Lexa e a revolta em torno dela abriu uma discussão para lá de importante. Antes dela, o mainstream buscava por números para medir o quanto pessoas LGBTs tinham conseguido se infiltrar na nossa cultura, mas essa abordagem não levava em conta os efeitos ou os particulares dessa representação numérica. Menos, na realidade, pode ser mais – é a velha discussão de qualidade sobre quantidade. Uma história digna e bem contada de uma personagem LGBT pode ter um impacto mais positivo na sociedade e na cultura do que 20 “Lexas” ou “Denises”.

Nessa busca por qualidade sobre quantidade, representatividade atrás das câmeras é tão importante quanto representatividade nas páginas do roteiro. “Incluir as minorias nessas produções e dar voz a essas pessoas, para mim, é essencial”, diz Ananda. “Uma escritora lésbica vai saber trazer uma visibilidade melhor para a personagem lésbica na série/filme do que um homem hétero. Como um homem hétero vai saber escrever ou colocar uma minoria no seu próprio filme/série, quando ele é naturalmente privilegiado na sociedade?”. É a questão que reverbera em Hollywood há um ano e oito meses, desde que o tiro (de festim) fatal foi desferido contra a enésima poderosa mulher lésbica que, ao morrer na ficção, matou também a esperança muito real de milhões de fãs.

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