Com uma evolução curiosa ao longo de sua primeira temporada, Arcanjo Renegado é a mais nova série do Globoplay que aborda tópicos conhecidos do público brasileiro, e exibe suas referências de maneira construtiva, mesmo que certas mudanças em sua proposta possam acabar limitando seu impacto geral.
Assistindo aos primeiros episódios de Arcanjo Renegado, seria impossível não se lembrar de “Tropa de Elite”, de José Padilha. E deixar de notar as semelhanças e divergências entre ambas as produções seria, até mesmo, contra-produtivo para analisarmos o contexto em que nova série se encaixa, dentro do cenário nacional atual. O filme de Padilha se propõe a discutir temas difíceis e delicados sobre aspectos da corrupção sistemática do nosso país, sob a perspectiva de um capitão do BOPE, mas o que realmente acabou chamando a atenção de um enorme público, era a maneira violenta como a história era retratada sem muitas restrições.
No começo de Arcanjo Renegado, esta mesma questão merece ser avaliada. Mikhael (Marcello Mello Jr., em uma ótima performance) e sua equipe sobem o morro durante uma operação, com as sequências buscando gerar a mesma tensão e emoção que o público espera deste tipo de trama, hoje em dia. Ao mesmo tempo, intercala-se a ação empolgante com apontamentos sobre a corrupção e o tão falado “sistema” que envolve esta dinâmica das favelas do Rio de Janeiro, onde a polícia e o tráfico protagonizam histórias como esta recorrentemente.
Há, no entanto, um desafio que precisa ser enfrentado pela série durante este começo, uma vez que sua proposta não inclui uma narração nos moldes já característicos do Capitão Nascimento e, portanto, torna-se mais difícil construir uma abrangência produtiva para se comentar o complexo cenário destas operações, além das políticas que as cercam. Ainda assim, a série se esforça para conseguir manter esta abrangência, mas deixa de buscar construir uma atmosfera tão “poética” quanto a referência, preferindo focar em exposições mais objetivas e uma construção de universo que está sempre ciente do que o público já está familiarizado, dentro deste tipo de história.
Os principais personagens típicos deste universo são logo apresentados. O protagonista é dominado por suas convicções, admiravelmente incorruptível, e motivado pela sua eficiência, mas por outro lado, precisa lidar com os tormentos de um jovem jornalista também cheio de convicção, que serve como porta-voz para muitos dos discursos e questionamentos que caracterizam os críticos à mentalidade de Mikhael. Para completar, temos as figuras políticas, retratadas com toda a frustração que pode ser percebida em diversas outras produções recentes, onde se tornam personagens absolutamente detestáveis e ardilosos.
Tento descrever este começo, pois me peguei pensando se todo este retrato “direto-ao-ponto”, por mais entusiasmado que seja, poderia ser produtivo para realmente gerar qualquer perspectiva ou argumento relevante às discussões atuais, com pontos que não estivessem sendo batidos à exaustão em todo tipo de série ou filme que aborda o nosso já exaustivo cenário político. Minha conclusão, era de que a série não teria muito a acrescentar, além de, obviamente, estar mantendo a discussão em pauta, e deixar que as perspectivas de seus personagens representativos de opiniões recorrentes, entrassem em conflito.
Mas conforme a série avança, o sentimento de frustração com cenário toma conta e atinge o fundo do poço. Mikhael é preso, praticamente desonrado pela instituição onde sempre depositou sua confiança e seus ideais, enquanto no lado da política, as armações continuam a todo vapor, mantendo o espectador tão nervoso com a situação quanto no momento em que se abre o jornal em tempos de escândalo. E é aí, que enxerguei uma proposta ainda mais prezada por Arcanjo Renegado, do que sua construção das discussões citadas…
Além de desonrado, o protagonista é exilado. Mas como suas convicções permanecem, não demora para que Mikhael entre no caminho dos vilões desta história novamente, e mais uma vez, acaba sofrendo consequências terrivelmente injustas. O público, então, que já estava frustrado com o cenário que vinha sendo exibido, alinha-se cada vez mais ao personagem injustiçado, e passa a torcer com fervor por atitudes radicais, onde todas estas injustiças possam ser resolvidas através do método que sempre cativa qualquer espectador fã de filmes e séries de ação: Vingança.
De “Tropa de Elite”, com a reflexão abrangente sobre um cenário que depende do mais básico comportamento humano, ao mais complexo sistema de poder, vamos caminhando cada vez mais fundo à uma proposta que se assemelha mais ao filme de “super-herói” nacional “O Doutrinador”, onde o desejo de uma grande parcela do público brasileiro de ver os políticos corruptos sendo aterrorizados, pode se concretizar na tela da ficção. E com tudo que o personagem vai sofrendo, fica difícil não dar permissão para que ele faça tudo que puder, pelos meios que forem necessários.
Nem é preciso dizer que, diante destas novas circunstâncias, debates morais acabam tornando-se menos impactantes. Afinal, discussão nenhuma pode ser equilibrada e realmente produtiva de “cabeça quente”. Mas no quesito entretenimento, a história já é outra, e “cabeças quentes” são sempre empolgantes de acompanhar.
Alguns aspectos técnicos de Arcanjo Renegado deixam a desejar, desde alguns empecilhos da abordagem estética “documental” que nem sempre soam tão intencionalmente implementados quanto deveriam, até a típica questão envolvendo a entrega das falas com naturalidade, e uma mixagem de som que nem sempre consegue esclarecer estes diálogos tanto quanto poderia (este é um problema comum de se comentar com produções nacionais, principalmente com a enorme variedade de pronúncias e gírias que temos dentro da nossa língua, mas que vem sendo contornado cada vez mais, conforme a nossa indústria televisiva continua evoluindo).
O resultado de Arcanjo Renegado é mais seguro do que poderia se esperar de uma produção que retoma estes assuntos com tanta empolgação, e com clara consciência do que já passou por este território, na televisão e no cinema. Seus dez episódios podem conter uma história relativamente longa, mas raramente deixam cair o ritmo ao ponto de entediar o espectador, ou deixá-lo desprovido de urgência com a trama geral. E no fim, a ação da série, que vai se mostrando um de seus apelos mais importantes, não decepcionará o público ansioso por uma produção que resolva abraçar as frustrações de suas questões sem respostas, e pular de cabeça.