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Amizade Dolorida | Crítica - 1ª Temporada

O algoritmo da Netflix parece gostar de temas que proponham quebras de tabus e piadas irreverentes que possam ser desconfortáveis para um público mais conservador. Amizade Dolorida se encaixa perfeitamente neste espaço da plataforma, mas apesar de seu charme, a série também é afetada por uma duração equivocada.

Com apenas sete episódios de menos de vinte minutos, Amizade Dolorida conta a história de dois amigos que se reencontram anos depois do colegial. Pete (Brendan Scannell) é um rapaz gay um tanto introvertido, que logo nos primeiros momentos do piloto, encara o universo chocante de Tiff (Zoe Levin), sua amiga que agora trabalha como Dominatrix. Tiff realiza as fantasias de dominação de pessoas que ficam excitadas através da humilhação, degradação, vulnerabilidade excessiva…

O gênero conhecido como “BDSM” sempre teve sua parcela de polêmica, e costuma assumir essa polêmica como parte fundamental da experiência. A série quer atrair o espectador justamente pela representação deste universo “desconfortável”, trazendo piadas transgressoras e exibindo coisas como ejaculações acidentais de forma escrachada. A graça está justamente na dessensibilização destes momentos, e no contraste entre as personalidades de Pete e Tiff perante este mundo de depravações.

Pete vai se abrindo para as várias interpretações destas dinâmicas da Dominatrix, aceitando o cargo de “assistente” de Tiff e gradualmente tomando um papel mais ativo durante os serviços. Considerando que estas práticas sadomasoquistas possuem toda uma comunidade que as discutem, fico curioso para saber o que achariam de uma série como esta, uma vez que Amizade Dolorida nem sempre parece estar lidando com o assunto com total consciência, mas também não se limita à apenas tirar sarro ou produzir choques para o entretenimento do espectador.

A série aproveita a perspectiva de Tiff, que também é uma estudante de psiquiatria, para exibir suas reflexões sobre o processo terapêutico que estas práticas podem proporcionar aos clientes. Tal qual discussões sobre qualquer tabu, somos levados a questionar se a censura e a reprimenda destes conceitos transgressores não são apenas prejudiciais para o auto-entendimento do indivíduo. Tiff acredita que, através destas “libertações”, seus clientes podem encarar a própria personalidade com a devida aceitação, consequentemente tornando-se muito mais “bem-resolvidos”.

A abordagem progressista, exaltando as mudanças sociais e a aceitação de conceitos antes considerados impróprios pela massa e pela mídia, tem seu sucesso mais do que comprovado dentro do acervo da Netflix, e permeia a construção destes personagens de maneira plenamente convidativa para este amplo-público alvo da plataforma. Pete e Tiff são personagens agradáveis, e apesar de serem relativamente superficiais, a relação entre os dois é o que realmente faz com que o espectador seja cativado. Juntos, formam uma evolução mais envolvente de se acompanhar.

A curta duração de Amizade Dolorida, no entanto, é o que parece impedir a série de explorar todas as suas ideias e construções com a devida produtividade. Essencialmente, quando vista em uma única maratona, a série pode soar como um filme comum, uma típica comédia romântica irreverente, e parte de sua estrutura evidencia justamente esta abordagem. Ao mesmo tempo, alguns episódios trazem situações diversas que poderiam gerar ainda mais material para capítulos procedurais, e as resoluções para algumas tramas da temporada são apressadas ao ponto de serem esquecíveis.

O último episódio também traz um exemplo de como esta mistura de estruturas (filme e série) pode limitar o potencial da proposta, apresentando uma nova situação de tensão para os protagonistas, mas claramente sem o tempo necessário para poder explorá-la com o devido impacto. Para um espectador casual que esteja apenas vendo a série descompromissadamente, é claro que essa “pressa” pode não fazer muita diferença para o aproveitamento da comédia, mas também impede que o público possa se envolver ainda mais com a trajetória destes protagonistas, ou ansiar por continuações.

Amizade Dolorida é uma série simples, com uma estética pragmática e um roteiro seguro repleto de elementos atrativos por sua transgressão. Tudo isso compõe uma produção fácil de ser aprovada para entrar no catálogo da plataforma, uma vez que há pouco risco envolvido, com a possibilidade de chamar a atenção de um público amplo. Semana passada, também escrevi sobre a série Special, que segue um molde igualmente simples de se produzir, e que por conta disso, depende integralmente da personalidade de seu texto e de sua distinção.

Ambas as séries são comédias convidativas por conta de sua duração que requer pouco comprometimento, mas enquanto Special acaba cumprindo seu papel com mais memorabilidade, por conta do carisma de seu protagonista, Amizade Dolorida apenas arranha o potencial de sua proposta, entregando um vislumbre do que seus protagonistas poderiam apresentar e evoluir caso tivessem mais tempo para tanto, e instigando o espectador a contemplar este curioso universo do sadomasoquismo, apenas para encerrar sua história subitamente.

A “liberação da vergonha” que Tiff defende é um assunto que com certeza pede por mais representações para provar seus pontos de uma maneira mais abrangente para o público, principalmente para aqueles que estejam vendo a série sem a mesma bagagem de espectadores mais acostumados à estas irreverências. Sex Education, para usar outra comparação da Netflix (muito mais longa), conquistou resultados produtivos com a mesma proposta de dessensibilizar o público para tabus sexuais e abrir espaço para discussões relevantes sobre suas situações e personagens.

Amizade Dolorida acaba soando como um grande piloto, introduzindo tudo que gostaria de discutir, plenamente pronta para inserir seus protagonistas em novas situações e complicações, apenas para ser deixada de lado e aguardar por uma possível renovação. Percebe-se que a série tentou economizar seu tempo de maneira dinâmica, por exemplo, com a falta de um “primeiro ato” propriamente dito para esta história. Ainda assim, poderia ter aproveitado melhor seu formato se procurasse explorar melhor cenas contidas, ao invés de tentar construir um filme fechado para o consumo casual do espectador.

Fãs das comparações que citei devem se sentir bem acomodados com Amizade Dolorida, e a relação contrastante dos protagonistas é mais do que o suficiente para comprar a proposta desta história. O ritmo acertado da série também fará com que o espectador não demore a consumir todos os curtos episódios. Dizer que a série “te deixa querendo mais”, no entanto, nem sempre é um elogio absoluto. Às vezes, a produção realmente precisa de um pouco mais tempo para deixar de ser apenas eficiente, e mostrar-se digna do investimento do público.

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