Trazendo um conteúdo desconcertante, mas produzida com uma qualidade técnica revigorante, Bandidos na TV é uma obra digna de atenção, ainda que exija estômago forte para ser acompanhada, além de um distanciamento saudável do espectador.
Bandidos na TV (com o título em inglês, “Killer Ratings”) é uma série documental que expõe, ao longo de seus sete longos episódios, as várias perspectivas e ramificações do Caso Wallace, uma investigação chocante que alcançou repercussão internacional. Em poucas palavras, a série explora a história de Wallace Souza, apresentador de televisão de Manaus que se tornou um símbolo da luta contra o crime para seus espectadores a ponto de ser eleito deputado com grande número de votos. O apelo tenebroso da história, no entanto, acontece quando Wallace é acusado de não só fazer parte, como comandar a rede de crimes da cidade, evidenciando uma suposta hipocrisia que supera, até mesmo, a ficção.
A série da Netflix, com seu padrão de qualidade digno de qualquer comparação internacional, se propõe a, não apenas estruturar o desenvolvimento deste caso de forma engajante para o espectador (esteja este familiarizado com o caso, ou não), como também providenciar espaço para os vários lados desta história exibirem as suas versões, por mais contrárias que possam ser. E nesta tentativa de credibilizar seu trabalho com tamanha abrangência, também aproveita as várias perspectivas contrastantes para gerar reviravoltas impactantes em sua narrativa, ao longo da temporada.
Primeiro, há de se notar a relevância dessa produção dentro do cenário televisivo brasileiro. Encaixando-se no gênero conhecido internacionalmente como “True Crime”, Bandidos na TV abraça o terror e o choque de sua história para capturar a atenção do espectador, e desenrola sua narrativa de forma estrategicamente estruturada para compor uma compreensão gradual da complexidade deste caso, assim como da progressão de seus indivíduos em destaque.
Por mais desconcertante que possa ser, tal produção possui um valor notável para o cenário televisivo nacional, uma vez que se propõe a expandir nossa visão, como telespectadores brasileiros, sobre um país que vai muito além dos jornais das capitais do sudeste. Em meio à sua história, Bandidos na TV constrói um retrato complexo sobre a realidade social de Manaus, e de sua política regional, buscando sempre se manter abrangente e imparcial. Tal imparcialidade é o maior trunfo da produção, pois acaba gerando um envolvimento distanciado cativante, com o espectador se sentindo munido de informações e perspectivas construtivas o suficiente para acompanhar o caso de forma relevante.
Sendo assim, a série não procura ilustrar um único discurso ao longo de seu retrato, mantendo-se aberta a encontrar argumentações e questionamentos diferentes em cada núcleo deste cenário, e estruturando seus episódios para enaltecer questões específicas a cada aspecto desta investigação. O primeiro episódio já demonstra esta abordagem com eficiência, mantendo-se focado na equipe de produção do programa “Canal Livre” (apresentado por Souza), e no impacto que este programa tinha dentro da comunidade que o assistia. Retrata-se, então, o quanto o “Canal Livre” era visto como um símbolo revigorante da luta contra o crime, e a sua relevância dentro de funções investigativas que iam muito além do que é comum na televisão.
A série mantém-se contida neste primeiro episódio, mostrando a superfície da situação e preparando o terreno para as grandes revelações, sempre prezando a compreensão orgânica do espectador. Conforme os episódios avançam, somos apresentados a novos elementos que vão compondo toda a complexidade desta investigação, como a Força-Tarefa responsável pelo caso, o envolvimento do filho Raphael Souza, e a posição de Wallace dentro da Câmara Legislativa. Parte do envolvimento gerado pela narrativa vem justamente do quanto a discussão sobre este caso vai se tornando mais frágil e delicada conforme sua escala aumenta.
Esta fragilidade se dá por conta da importância, tanto das repercussões nacionais e internacionais do caso, com a relevância do cenário político e da postura da imprensa, quanto do contexto nas ruas, onde uma guerra entre traficantes acaba gerando reviravoltas que serão sentidas em todos os níveis destas escalas. Um único depoimento pode alterar toda investigação, e a credibilidade destes depoimentos acaba sempre sendo questionada por algum dos lados, com argumentos que podem apontar razões vindas tanto do topo, quanto da base deste cenário. Uma situação delicada, que pode, facilmente, perder sua objetividade.
O clima de conspiração paira por boa parte da temporada. Revelações supostamente incontestáveis, impactantes para o espectador, são questionadas logo no episódio seguinte, enquanto continua-se progredindo discussões sobre sensacionalismo, imparcialidade, disputas políticas e acima de tudo, sobre a violência em diversas formas. Não é necessário muito tempo para o espectador perceber que esta história não poderia caminhar para nenhuma resolução realmente satisfatória, e de que estamos acompanhando um retrato inevitavelmente trágico.
Para a polícia e para a imprensa, Wallace era culpado de, se não todos, parte das sérias acusações que lhe foram atribuídas. Para sua família e uma porção da população, o apresentador e deputado era vítima de uma perseguição política. É interessante notar como, em ambos os lados, diversos depoimentos apontam atitudes como sendo, principalmente representativas, tanto das operações policiais, quanto dos discursos de Wallace. Por este lado, estaríamos acompanhando uma guerra de simbolismos e expressões que é, no entanto, marcada por uma violência aterrorizante e desenfreada. Como ser objetivo em um cenário como este? Se não há uma resposta clara para esta pergunta, só resta a tragédia.
Bandidos na TV é empolgante, mas o retrato que constrói tão habilmente com imagens de arquivo e reconstituições, é emocionalmente desgastante e difícil de digerir. A série não está interessada em aproveitar sua eficácia estrutural para se manter no conforto do entretenimento, e aborda sua história sem medo de chocar o espectador, ou instigar o desespero perante as situações. Ao longo da temporada, até mesmo detalhes como as escolhas musicais são dignos de nota, por complementarem esta experiência de forma edificante.
Não é uma série fácil de ser assistida, mas Bandidos na TV merece atenção por sua abordagem e por sua habilidade técnica. As discussões mais aprofundadas sobre o caso podem encontrar material de sobra para se tornarem mais fervorosas, mas para nós, como meros espectadores, o principal resultado é, inevitavelmente, a perplexidade.