Em 2021, recebemos um presentão batizado de Missa da Meia-Noite (2021) pelas mãos de Mike Flanagan, cineasta americano muito conhecido por suas obras de terror, como Hush – A Morte Ouve, O Sono da Morte, Ouija: Origem do mal (todos em 2016) e Doutor Sono (2019), além das séries A Maldição da Residência Hill (2018) e A Maldição da Mansão Bly (2020), ambas produzidas pela Netflix.
O mais recente trabalho de Flanagan, também disponível no catálogo da Netflix, explora o terreno do terror de uma forma diferente, em vista que foca em seus personagens e trabalha temas raramente retratados dentro do gênero. Isso sem contar o quanto dirige bem seu elenco, onde sempre notamos alguns atores e atrizes se destacando de modo muito natural.
Alguns reclamam que suas obras ostentam diálogos demais! Algo que não deixa de ser verdade, porém, devemos exaltar que todo esse blá-blá-blá exprime valor narrativo claro, que auxilia na progressão dos fatos de maneira efetiva pela construção da identidade linguística própria dele.
Mas, se ainda continua achando que toda essa conversação entre personagens é muito lenga-lenga para o seu gosto, então, pule de cabeça na nova produção original da Netflix chamada Arquivo 81, que dispõe de algumas qualidades encontradas em Missa da Meia-Noite, tirando o fator de que aqui temos uma frequência dinâmica maior, que provavelmente manterá os assinantes presos à narrativa e clicando na velocidade da luz para checar o episódio seguinte.
A série produzida pelo renomado diretor James Wan e desenvolvida por Rebecca Sonnenshine é baseada no podcast de mesmo nome sobre um restaurador de arquivos (Mamoudou Athie) que aceitou um trabalho restaurando fitas de vídeo danificadas e é envolvido em um mistério de uma diretora desaparecida (Dina Shihabi), que conheceu um culto demoníaco em um prédio famoso de Nova York nos anos 1990.
Pot-pourri de referências
Talvez a primeira coisa que irão notar enquanto assistem à Arquivo 81, sejam a quantidade de referências cinematográficas existentes pela narrativa desta produção original Netflix.
Olhem! São realmente muitas (mesmo)! Tantas que provavelmente teríamos que assistir duas vezes para ver se não deixamos de perceber alguma coisa pelo caminho.
Apenas algumas para matar a curiosidade: Um Tiro na Noite (1981) de Brian De Palma (obra inspirada em Blow-Up – Depois Daquele Beijo de Michelangelo Antonioni); O Iluminado (1980) de Stanley Kubrick; Poltergeist – O Fenômeno (1982) de Tobe Hooper; A Bruxa de Blair (1999) de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez; O Chamado (2002) de Gore Verbinski; e o episódio “As Máscaras” da série televisa Além da Imaginação (1959 – 1964).
Até encontraram espaço para incluir um pouco de Os Caça-Fantasmas (1984) de Ivan Reitman; além de tantas obras sobre casa mal-assombrada por espíritos ruins.
Admite-se que é uma forma de entretenimento convidativa assistir à Arquivo 81 e tentar pescar as referências que aparecem pela trama, lembrando algo que Steven Spielberg fez em Jogador Nº1 (2018).
O alcance da câmera
Que a câmera, ou mesmo a máquina fotográfica, são ferramentas revolucionárias que transformaram nossa percepção como seres humanos já sabemos muito bem!
Ainda assim, raramente paramos para pensar no quanto tais revoluções alteram ou significam certas coisas para nós. Peguemos a máquina fotográfica, por exemplo, que captura ou “rouba” um instante de um momento da realidade em um pequeno quadro; ou mesmo a câmera de vídeo que atua como uma máquina de raio-X gravando cada um dos detalhes dentro do mesmo quadro, só que em movimento.
Por nossos olhos e outros sentidos usamos de nosso conhecimento e percepção para atribuir certo valor em algo (seja uma fotografia ou plano cinematográfico) que já não é mais uma prova exibitiva da realidade, mas um novo entendimento sobre aquilo que observamos naturalmente sem atenção focada.
Em alguns casos somos transportados, imersos nessa recente descoberta compreensão de uma forma emocional e espiritual como nunca sentidas anteriormente. O alcance de possibilidades imagético transmitido pela câmera é a ideia central da narrativa de Arquivo 81, que conecta ambos protagonistas que habitam tempos diferentes.
Pelas performances de Mamoudou Athie e Dina Shihabi temos o coração que bomba à narrativa adiante, sempre transitando em um plano desconcertante onde tentamos como espectadores compreender se tudo aquilo que vemos é fantasia, sonho ou realidade.
Perigos religiosos
Arquivo 81 também discute algumas temáticas relevantes, como o fanatismo religioso e a nossa dependência espiritual, principalmente quando nos encontramos desamparados em nossos dias.
Foi muita competência da criadora Rebecca Sonnenshine em tratar do assunto de uma maneira onde não focamos apenas em um segmento religioso específico, uma vez que aqui foi exposto a abordagem sistemática de conversão executada por alguns membros de uma hierarquia mais alta para com aqueles que se encontram necessitados ou desejosos por algo a mais.
A seita que acontece na surdina em alguma parte do prédio novaiorquino em destaque, indica que à figura divina que eles veneram chamada Kaelego é tanto Deus quanto demônio, demonstrando o lado positivo e negativo das religiões.
Quando nos apegamos aos dogmas religiosos, naturalmente percebemos o que de mais nocivo encontramos nos membros mais fanáticos de determinados grupos, que bloqueiam ou restringem quaisquer pensamentos e visões externas que possam questionar alguns princípios estabelecidos; agora, enquanto guiados exclusivamente pela força espiritual envolvida, geralmente alcançamos um estado de graça pessoal, pois tal fé move-se à base da compaixão e humildade.
Só que na ficção da produção Netflix, como no mundo real, somos doutrinados por gente desesperada ou de pura má índole mesmo, portanto, faz-se de tudo (!) pela preservação de tais preceitos (designados pelo homem) que “garantem” que nossa fé e desejos serão recompensados lá na frente.
Essa dependência espiritual tende a anular nossos sentidos, enquanto nosso cansado corpo e alma buscam qualquer auxílio diante uma vida de tanto sofrimento e solidão, tornando-nos escravos conscientes de um “conforto” que apenas impede nossa evolução no entendimento da vida e a morte.
Pela última cena de Arquivo 81, concluímos que havendo uma segunda temporada, certamente irão explorar ainda mais alguns dos níveis de tal dependência. Torçamos para que isso aconteça, pois a primeira temporada deixou uma mais que satisfatória impressão.