Traumas & Repressões

Crítica – Ataque dos Cães

Drama faroeste da Netflix propõe falar sobre masculinidade tóxica em uma abordagem implícita, mas intoxicante

Existem duas formas narrativas muito claras em como contar uma história. Podemos descrever cada um dos atos de modo expositivo para que fique descrito com precisão e rigor, sem espaço para ambiguidade; como também é possível colocar em prática uma linguagem que caminha no terreno do sugestivo, onde abrem-se as possibilidades para interpretações de todo tipo.

Não há certo ou errado aqui, apenas escolhas de como levar a outros determinados tipos de acontecimentos.

Mesmo assim, deve-se admitir que temos um algo de atração com narrativas que não entregam o ouro de mão beijada. Histórias que trabalham ideias de modo que vão sendo reveladas camadas e mais camadas, nuances por cima de nuances, em uma busca que soa incerta, porém lúcida.

Além do fator entretenimento que se encontra inferido dentro de tal proposta narrativa. Mantendo o espectador hipnotizado pela atmosfera, enquanto mira alguma compreensão daquilo que seus sentidos forem capazes de apreender.

A habilidosa cineasta Jane Campion inundou o espetacular Ataque dos Cães com implicidades, arrebatando com força nosso íntimo que a todo tempo pressente que algo trágico está prestes a ocorrer.

Neste drama faroeste da Netflix, baseado no romance de 1967 de Thomas Savage, acompanhamos os irmãos Burbank, fazendeiros ricos em Montana, que no caminho do mercado conhecem Rose (Kirsten Dunst), uma proprietária de restaurante viúva e seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee). Phil (Benedict Cumberbatch) se comporta de forma tão cruel que leva os dois às lágrimas, deleitando-se ao mesmo tempo que levando seus companheiros vaqueiros ao riso – todos exceto seu irmão George (Jesse Plemons), que conforta Rose para depois apaixonar-se por ela, pedindo sua mão em casamento não muito tempo depois. Enquanto Phil oscila entre a fúria e a astúcia, sua provocação a Rose cresce; assim como sua zombaria para com o filho dela também, porém de uma maneira diferente, ao ponto de ter decidido colocar o menino sob sua proteção. Será que este último gesto é um abrandamento que deixará Phil exposto ou uma trama que se transforma em uma ameaça para mãe e filho?

Masculino/Feminino

Dentre as sugestões aplicadas pela diretora neozelandesa Jane Campion, percebemos um maior foco nas manifestações do masculino e feminino através das personagens.

A certa altura de Ataque dos Cães, notamos uma inspirada Kirsten Dunst que não se encontra muito bem, cambaleando em direção a um beco, onde toda retraída bebe de uma pequena garrafa de Bourbon que mantinha escondida, praticamente como um caubói bebum que acabou de se retirar de um bar estilo ‘saloon’; enquanto em outro momento, observamos um ameaçador Benedict Cumberbatch sentado na sua calmaria fazendo uma trança de corda usando couro, como se fosse uma cabelereira trançando os fios de cabelo de uma pequena garotinha.

Na obra original da Netflix, vemos Campion cruzando varão e feminal de maneira orgânica, questionando nosso apego às identidades instituídas, trazendo algo do início do século passado para o momento atual; ainda nessa leva, percebemos que a cineasta provocou praticando uma quebra de padrões, expondo o corpo físico masculino, tanto de modo carnal quanto passional.

E através do roteiro, também escrito pela autora de cinema, recebemos um organismo vivo, que se intercala ao mesmo que estabelece Phil e Rose como oposições. Algo que ambos atores aproveitaram muito bem, dando a impressão de que veremos Cumberbatch e Dunst presentes na temporada de prêmios que se aproxima.

Espelho

Mais a frente na trama, analisamos a diretora nos surpreender ao espelhar Phil e o jovem Peter, interpretado de modo competente por Kodi Smit-McPhee.

Ambos apresentam uma frieza que choca: Phil castrou por volta de 1500 cabeças de gado usando um canivete pessoal sem qualquer uso de luvas; enquanto Peter dissecou um belo coelhinho na busca por mais conhecimento, uma vez que almeja se tornar um médico futuramente.

Aquilo que os separava na primeira metade de Ataque dos Cães, repentinamente encontra um eixo que move a narrativa adiante para um final ambíguo, como tudo proposto pela veterana cineasta, que tem um auxílio especial de Jonny Greenwood (guitarrista e tecladista da banda de rock alternativo Radiohead), que elaborou uma trilha sonora que encharca os visuais de tensão e angústia.

Tal aflição sentida por toda a história, certamente harmoniza com o íntimo do protagonista, que representa as dores da masculinidade tóxica. No entanto, Jane Campion é tão capacitada que ao rolar dos créditos finais, alteramos nossa visão sobre o cruel Phil, que vai de torturador a torturado.

Uma alma que anseia se ver livre da espada (função simbólica) e do poder dos cães (coletivo masculino).

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