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Crítica | Black Mirror - 4ª Temporada

A relação entre Netflix e Black Mirror data bem antes da empresa de streaming contratar os direitos criativos e de distribuição da série criada por Charlie Brooker. Por volta de 2014/2015, Black Mirror começava a ter uma certa repercussão na internet, mesmo que mínima. Originalmente britânica, do canal Channel 4, era antologicamente episódica – como é atualmente, característica herdada de outra produção britânica de mesmo foco e nível: The Twilight Zone -, e despertava curiosidade de alguns localizados grupos de debate por conta de sua análise social através da interação do homem com a tecnologia. Depois de um tempo, em 2015, Black Mirror apareceu no catálogo da Netflix. A partir disso, a então pouco conhecida produção se tornou um fenômeno. Duas temporadas e um episódio especial completamente evocativas, impactantes e relevantes para a atual conjuntura evolutiva socialmente. Nela, a Netflix observou um potencial gigantesco. Então, resolveu compra-la. Ter os diretos totais, juntamente com o criador Charlie Brooker, para produzir mais episódios. A relação foi consolidada.

A terceira temporada saiu em 21 de outubro de 2016. Seis episódios, o dobro da quantidade por cada temporada anterior. Ainda com sua fórmula de estudo comportamental do homem perante a tecnologia, mas com nítidas divergências narrativas. Uma delas, a mais questiona: a exemplificação e simplificação de todas as histórias, por mais direcionadas que elas pudessem ser. Falando sobre determinados aplicativos, teorias, conceitos tecnológicos e claro, a posição do indivíduo social nisso. Eis então, um pouco mais de um ano depois, em 29 de dezembro de 2017, a estreia da quarta temporada de Black Mirror. Outros seis episódios. Outras seis distintas, mas complementares narrações. E, por consequência de toda rápida construção dessas duas novas temporadas, outras falhas. Algumas, idênticas à antecessora. Antes de analisar episódio por episódio, a constatação de possíveis falhas nos roteiros e histórias – em termos comparativos de criação e ambientação aos primeiros anos pela produtora britânica -, pode ser tida a partir da mudança do ritmo em que os episódios foram feitos.

A primeira temporada foi lançada em 2011, com os episódios lançados semanalmente. Desde antes do lançamento, Brooker teve tempo suficiente para conceber essas histórias, trabalhá-las de maneira independente e, assim, permitir-se estar em um tempo maior de desenvolvimento. A segunda temporada surgiu dois anos depois, em 2013. Um espaço de um pouco mais de um ano e meio para fazer mais três episódios. Em seguida, mais um ano e meio para publicar o especial de natal, em dezembro de 2014. Em 2016, uma terceira temporada, enfim sob conteúdo original da Netflix, foi disponibilizada com seis episódios. E em 29 de dezembro de 2017, a quarta temporada de Black Mirror estreia nos serviços de streaming.

A seguir, uma análise rápida sobre cada episódio, pois por serem antologias, ou seja, não há linearidade ou sequência narrativa dos mesmos, renderam observações separadas. Em seguida, uma análise sobre a quarta temporada como um todo.

Arkangel
O episódio que abre a série é dirigido por Jodie Foster. A emblemática atriz de O Silêncio dos Inocentes conduziu essa trama que aborda uma mãe, preocupada com sua filha após alguns incidentes fora de seu controle, decide recorrer a um serviço de controle parental, onde tudo um pequeno implante permanente dá à mãe a opção de monitorar sua filha. Esse monitoramento ocorre através de um tablet, onde há informações sobre o controle de sinais vitais, localização via GPS e observação em tempo real do que ela está vendo. A visão da filha pode ser até obstruída por filtros, caso a cena seja interpretada como chocante pela mãe. O episódio, então, aborda não somente esse fundamento do controle dos pais, concebendo a ausência de privacidade dos filhos, mas pretende dialogar sobre como as relações familiares podem ser dependentes dessas tecnologias, que permitem o controle e assim, disponibilizam uma sensação de segurança para eles. A direção de Foster é segura e consegue captar a urgência de determinados acontecimentos na vida da mãe e principalmente, na da filha. Mas ao mesmo tempo, peca por forçar demais uma aura neurótica em cima do controle maternal, onde a análise acaba se tornando muito mais individual do que propriamente, uma narrativa mais plural.

USS Callister
Com explícita adaptação e homenagem à série Star Trek, a segunda antologia da série foca no ramo do gameficação, um conceito explorado na tecnologia onde um ambiente virtual – seja um videogame ou outra interação digital – lhe permite ter mais controle e participação no desenvolvimento e concepção daquela mídia. É altamente explorável e, em alguns casos, permite total controle do criador. Esse é o foco que envolve esse episódio sobre uma empresa de mesmo nome, criada por um engenheiro de segurança que, cansado da opressão e desvalorização do ambiente profissional, recria um cenário virtual baseado em gosto particular seu, colocando todas essas pessoas do mesmo ambiente através de uma análise e transfusão de DNA, da vida real para o ambiente aumentado. Essa teoria foi experimentada também no segundo episódio da terceira temporada, onde através de um jogo de videogame, vivenciava experiências moldadas por concepções alheias às programações e códigos da mídia. Por ser um debate extremamente novo e precário de informações, o foco é estabilizado pelo serviço de fã prestado à Star Trek, com até mesmo o humor clichê da série antiga. O que compromete essa história não é nem a questão de ter explorado superficialmente esse aspecto da tecnologia. Mas é por acrescentar motivações perenes e fúteis a um personagem. Suas ações, assim que a série as revela, são desmontadas pelo roteiro, criando uma vala entre a tentativa de coerência dessas motivações com os devidos atos.

Crocodile
O episódio do meio da quarta temporada é narrativamente mais evolutivo que os antecessores. Suas ramificações se dialogam e permitem uma maior apreensão da história em si. Um acidente acontece, provocado por um casal de amigos, os forçando a esquecer toda a história. Futuramente, um evento faz com todo esse passado volte à assombrá-los, principalmente a mulher, protagonista da trama. Em meio a tudo isso, uma empresa de seguros/segurança possui um dispositivo que permite visualizar as memórias das pessoas, justamente para que a comprovação do que viram, ajude a identificar de fato, o ocorrido. Mas uma pequena leitura compromete essa protagonista, fazendo a tomar atitudes que não gostaria. Apesar de toda uma trama investigava “forense”, ele é pautado sobre uma ideia até mesmo recorrente. Em comparação devida, as leituras das lembranças são dados que não estão competentes – integralmente, ao menos – nas mídias sociais ou qualquer plataforma digital. Por mais que uma ou outra, em nossa realidade, traga as lembranças, são somente as que foram registradas por esse dispositivo. As inertes, esquecidas e não discutidas permanecem sob sigilo. Então, Crocodile demonstra discutir sobre alguns pontos mais éticos e morais do que propriamente tecnológicos. É claro que, com o avanço da tecnologia, a moralidade é também uma pauta crescente e envolta nesse desenvolvimento. Portanto, o roteiro do Brooker nesse episódio conseguiu sobressair-se em meio a essa abordagem mais sutil dentro do campo moral, compondo uma análise mais bio-política.

Hang the DJ
O nome do episódio é uma referência à música “Panic”, da banda britânica The Smiths. Em tradução não-literal, representa uma vontade de mandar o DJ/rádio/banda parar de tocar quando é uma canção não muito simpática. Nessa quarta história, vemos uma sociedade projetando relacionamentos a partir de um aplicativo de paquera, parecido com os que são usados atualmente. Nele, um casal se conhece através desse aplicativo e, segundo o próprio, possuem doze horas apenas de relação. Sim, o sistema estipula o tempo necessário de convivência para determinado casal. Depois de doze horas, eles começam a ter outros encontros e relacionamentos. Nenhum deles pode ser negado, mas possivelmente, se for de ambas as partes, pode ser terminado antes do tempo. Apesar de, em sua camada mais visível, flertar com questão da busca do par perfeito ou da pessoa perfeita, a narrativa tece não somente críticas a esse conjunto de regras computadorizadas – até porque, se baseasse somente em críticas, não traria muito sentido á ponto de estudo -, mas emula a relevância deles para os próprios relacionamentos digitais. Por exemplo, se um aplicativo de namoro ou paquera demonstra um nível de compatibilidade com a outra pessoa, quais dados alimentam essa estatística? O que é realmente obter a certeza de que um encontro resultará em um relacionamento duradouro ou até mesmo o dito para sempre? Apesar da possibilidade de sua ponderação ser interpretada como banal, as inserções de pequenos tópicos sobre comportamento ou a própria futilidade de cotidianos a dois, Hang the DJ permanece sóbrio em sua pretensão.

Metalhead
Em um cenário aparentemente mais militar e dialogando com a tecnologia em sistemas de vigilância e patrulha, uma locação pós-apocalíptica mostra três personagens chegando a um galpão abandonado em busca de algo. Ao chegarem, demonstram receio de serem descobertos pela segurança. Após serem pegos, os dois homens são mortos e a mulher perseguida por uma espécie de cachorro tecnológico todo de metal (em tradução livre, metalhead é cabeça de metal), altamente perigoso com um intuito apenas: matar quem for detectado. Nomes de empresas ou quem controla “cães de caça” não são divulgados, o que permite à história focar em um gênero de perseguição, onde a mulher tenta fugir do animal mecânico. Ele é alimentado por sistemas de detecção de DNA, sons através de um radar, além de disparar dispositivos de rastreamento. É o episódio com a menor quantidade de diálogos de todos, onde apenas é focado essa caça e também, rendendo dúvidas sobre o que possivelmente aconteceu á sociedade, para ter a necessidade de uma vigilância portada dessa forma. Novamente, eis uma semelhança com o tema do quinto episódio da terceira temporada, explorando esses âmbitos da tecnologia no corpo militar. No entanto, a falta de certos apontamentos característicos da produção, principalmente sobre a relação entre tecnologia e o homem individual e social e as consequências do domínio da primeira sobre a última, debitam uma norte mais coerente e jus ao escopo da própria Black Mirror. Não que nada possa ser desvalorizado. Filmado inteiramente em preto e branco, esteticamente dá essa impressão de vazio e isolamento social, mas que a narrativa não conseguiu complementar.

Black Museum
A antologia que fecha a quarta temporada de Black Mirror apresenta um cenário também isolado e, de alguma forma, futurístico, com uma espécie de museu ao lado de um posto de gasolina abandonado. Uma mulher chega até o museu e é recebida pelo dono. Vazio, o lugar apresenta objetos que representam crimes tecnológicos cometidos ao longo da história recente. Dentro do episódio, há dois contos que ao menos, resgatam um pouco a insensibilidade emotiva dentro da situação tecnológica já costumeira das primeiras temporadas de Black Mirror. O primeiro, mostra um médico que se tornou viciado em dor depois de um aparato que possibilitava a transfusão de sensações físicas sem nenhuma interferência no corpo de quem as recebe. A segunda, é sobre um sistema de compartilhamento de consciências, onde uma mente de uma pessoa morta/em coma pode ser transferida para alguém vivo. O flerte do segundo conto com senso esquizofrênico ameaça o senso de perturbação, mas é infelizmente cerrado de uma maneira frustrante. A terceira história, tida como o dono como a “principal atração” é a de um criminoso que foi condenado à cadeira elétrica, mas que recebeu a esperança de ter sua alma reproduzida depois de sua morte, para a família. Porém, é enganado e transportado para esse museu, onde era a atração que mais chamava atenção. Clonado tecnologicamente, com todas as sensações possíveis, também foi recriada a cena que foi eletrocutado. Pela interação tão impressionante e pela construção posterior de um suvenir, logo rendeu público e dinheiro. Mas depois de um tempo, o museu foi abandonado. Essa última história é um gancho para a resolução do episódio, acrescentando não somente fascínio pela mudança de roteiro, como também pela especulação social sobre a glorificação da violência e da vigilância punitiva. Mas, se o episódio focasse somente na idealização dessa última história, renderia um tempo melhor para que a empatia com a protagonista acontecesse, também colocando suas motivações e considerações sobre a situação de maneira mais fiel e condizente.

A partir da terceira temporada, lançada em 2016, deu aos criadores uma maior margem de tempo. Mais de dois anos, desde que a Netflix adquiriu a série, em 2014. As mudanças já ocorrem logo na quantidade de episódios. Mais três do que o normal, para formar seis e serem lançados ao mesmo tempo via streaming. Agora, o tempo foi diminuindo. A pressão, provavelmente, foi ficando maior. Afinal, em questões de liderança e poder, a empresa Netflix provavelmente é bem maior que a da Channel 4. Mai seis episódios, escritos por Brooker, e cada um deles dirigido por um diretor diferente. Por conta dessas divergências, há enfoques e construções também distintas para cada episódio, mesmo que o roteirista tenha sido o mesmo. E principalmente, Brooker pode também levar todos os créditos sobre os méritos, é responsável pelas falhas no roteiro de cada antologia, representando uma ideia um pouco aquém do que poderia ser. Talvez tenha sido a pressão, o tempo menor para elaborar as histórias para essa nova temporada. E mesmo ligando outros episódios de temporadas anteriores, o quarto bloco de histórias de Black Mirror representa não somente uma irregularidade na construção de cada um deles, mas na finalidade como um todo.

Em suma, Black Mirror estreia sua quarte temporada com mais erros do que o costume. Mesmo que a responsabilidade pela manutenção da qualidade seja muito grande, há de notar uma queda, uma perda de direcionamento por conta do acúmulo de diversas histórias, abordagens e indagações. Antes descompromissada em ser somente uma leitura caótica do universo tecnológico, hoje Black Mirror irrompe uma demanda que talvez o criador não esperasse, levando sua produção a um caráter discursivo exageradamente forçado e desprovido de fundamentação cabível às suas próprias identidades, na narrativa, na concepção filosófica e analítica desta, e na mensagem debatida.

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