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Crítica | O Irlandês

Um nome como de Martin Scorsese faz barulho suficiente para se ouvir até em Saturno! Justificável, já que estamos falando de um dos grandes artesãos vivos da indústria cinematográfica. O autor que remodelou na década de 70, o cinema de filmes sobre gângster com o incrível Caminhos Perigosos em 1973, estrelando Harvey Keitel e Robert De Niro.

Ao passar das décadas, a identificação de Scorsese com o ambiente do mundo do crime não diminuiu, dado que tivemos ainda Taxi Driver (1976) – sua obra mais aclamada – , Os Bons Companheiros (1990), Cassino (1995), Gangues de Nova York (2002), Os Infiltrados (2006) e O Lobo de Wall Street (2013) – melhor obra do diretor neste século.

Contrastando, também temos a coluna das obras mais espirituais na filmografia do diretor, como A Última Tentação de Cristo (1988), Kundun (1997), e mais recentemente, o bom Silêncio (2016).

Agora, temos o mais novo Scorsese chegando, e prometendo ser um ferrenho competidor nesta temporada de prêmios que se aproxima já a partir do mês que vem. E o cineasta renomado veio cheio de munição, pois recrutou Robert De Niro – seu ator predileto, com quem já trabalhou nove vezes na carreira – e Joe Pesci – retirado da aposentadoria, e quatro trabalhos em parceria. Contudo, se tem alguém que passou como um furacão em cena no novo longa-metragem lançado pela Netflix, este alguém é Alfredo James Pacino, o Al Pacino.

O trio à frente de O Irlandês nos transporta de volta ao passado, onde seguimos a trajetória de Frank “O Irlandês” Sheeran enquanto este lembra os tempos quando trabalhava para a família Bufalino, liderada por Russell, que o levaram a se envolver com Jimmy Hoffa, popular líder de sindicato amado por muitos. Tal relação se estreitará, até o desaparecimento do que era a segunda maior figura pública na América nos anos 60.

Para começo de conversa, vale avisar que a nova obra de Martin Scorsese possui dois filmes dentro de si. Calma lá, calma! Isso não diz respeito a longa duração da história (209 minutos). Na real, o excessivo tempo não é um problema aqui. Todavia, é inevitável após assistir esta produção Netflix, não notar que na primeira metade – algo por volta dos 110 minutos – rondamos um conceito; e na segunda – e melhor – parte, encontramos uma outra espécie.

Simplificando: começa e trata uma coletânea tipo ‘greatest hits’ do que se espera do cineasta discorrendo o mundo do gangsterismo e máfias, para depois subverter com expansiva e sensível maturidade o ideal glorificado da vida criminosa.

O “segundo” filme dentro de O Irlandês é o que torna a experiência algo mais substancioso para o espectador.

Este aspecto dual se mostra algo de muito precioso, inclusive, de modo que mesmo a montagem de Thelma Schoonmaker – maior parceira na vida profissional de Scorsese, com vinte produções em parceria – repete esta ideia, pois existem dois estilos aqui que se mesclam com eficácia. Usando o cinema mais recente do próprio diretor, pode-se afirmar que ele é, em momentos, O Lobo de Wall Street (mais dinâmico); enquanto em outros é como Silêncio (mais contemplativo).

Tal dualidade de conteúdo, aplicada em boa forma por Scorsese/Schoonmaker estabelecem bem a narrativa e seus entremeios. Também entra nesta equação de atributos técnicos, o distinto trabalho do cinematógrafo mexicano Rodrigo Prieto – trabalhando pela terceira vez ao lado do renomado autor de cinema. Os movimentos (travelling, grua) e planos de Prieto são o que de melhor há na primeira parte de O Irlandês. Neste quesito é até possível estabelecer uma comparação entre o longa da Netflix e o mais recente trabalho de Quentin Tarantino, Era Uma Vez em Hollywood. Ainda bem que Scorsese não imitou Tarantino além do primor técnico fotográfico neste específico caso, visto que o material do último lançado este ano é bem infantiloide.

O fato do ofício de Rodrigo Prieto ser o maior destaque da primeira metade, diz uma coisa com muita clareza: a narrativa da trama pode apresentar elaborada construção, mas muito desta, tem carência de real impacto, seja emocional ou de qualquer outro tipo – à parte a cena em que Russell e Angelo Bruno (Harvey Keitel) confrontam Frank por uma bobagem que ele fez – , ou seja, é prático de se engajar, porém por boa parte do tempo é natural questionar se o cineasta vai evocar o eixo disso tudo.

Vai! Apesar de alguma demora.

E, este vem pela relação entre Frank Sheeran e Jimmy Hoffa, respectivamente, Robert De Niro e Al Pacino. No enredo, há um ponto de virada na vida de Hoffa, e é partir daí que a obra de Scorsese se transforma no filme que te prende à força, juntamente de um humor cirúrgico (méritos para Pacino).

Do trio, quem menos se destaca é De Niro. Talvez, pelo fato de ator e diretor terem uma relação já mais estabelecida, houve algo de muito familiar – no sentido negativo da palavra – para ambos em O Irlandês, fazendo mais do mesmo, especialmente o ator, que escorrega em alguns vícios de performance já conhecidos – auto parodiando a si mesmo – , como falas balbuciadas (gagueira), e caretas que incontáveis impressionistas talentosos aprenderam a emular ao longo das décadas. Contudo, na hora final da produção Netflix, o roteiro de Steven Zaillian dá uma ajuda, e oferece algo valioso para De Niro: silêncios. E, para os assinantes Netflix, chances para meditarmos a respeito das escolhas do personagem. Nestes momentos, Robert De Niro mostra porque é um titã entre atores.

O retorno de Joe Pesci para as grandes telas é algo de muito prazeroso, definitivamente. Prato cheio para cinéfilos. E, o baixinho ator entrega o que se espera de alguém que tem um nome de tamanho calibre! Em O Irlandês, Pesci atua no modo minimalista, bem diferente do Tommy DeVito de Os Bons Companheiros, mostrando ser um profissional de alcance, escopo. Não chega perto de enfeitiçar como no longa de 1990, mas cumpre seu papel na narrativa de Scorsese.

Agora, Al Pacino merecerá sua atenção, admiração e qualquer outra coisa mais nesta produção original Netflix. Uma vez que não se via este tipo de Al Pacino faz um bom tempo.

Existe uma frase de Alfred Hitchcock que diz – ” … atores deveriam ser tratados como gado”. Quando o cultuado cineasta conhecido como o mestre do suspense disse isto, fez muitos ficarem irritados, mas sem razão, pois entenderam errado suas intenções. Quando Hitchcock busca equivaler profissionais com o gado, se refere a ideia de que muitos destes são atores/atrizes de egos inflados e difíceis de domar, o que atrapalha a função do diretor em contar a narrativa pretendida, por vezes. Jack Nicholson, ou mesmo os falecidos Laurence Olivier e Dennis Hopper fazem parte desta lista de especialistas complicados de se controlar. Al Pacino também faz parte deste seleto grupo. Ainda bem!

Isso porque o ator de origem italiana nunca havia trabalhado com Martin Scorsese antes. Mesmo assim, Pacino não sentiu pressão alguma, aparentemente.

No controlado e minucioso longa da Netflix parece que não haveria espaço para algo dissonante – no melhor dos sentidos. Al Pacino desafia tais regras, posto que podemos admirá-lo em seus momentos de exagero, bem ‘over’ mesmo, como algumas atuações da incrível Meryl Streep, por exemplo. Mais: seu Jimmy Hoffa é o melhor contraponto que irá encontrar neste filme.

É quase certo imaginar que o ator de 79 anos vai figurar nesta temporada de prêmios que se avista. Incluindo, talvez, uma indicação ao Oscar na categoria de ator coadjuvante. O quê um sorvetinho num faz, não?!

Mesmo esta sendo uma obra de grande reflexão em seus momentos derradeiros, a memória resgata a introdução de Tina Fey e Amy Poehler na cerimônia do Globo de Ouro de 2014, quando a segunda brinca com diálogos à la Scorsese com o diretor que era um dos indicados da noite na festa da indústria do cinema. Existe uma fala de Al Pacino em O Irlandês que tira sarro desse estereotipo tão presente nos trabalhos que abordam o gangsterismo e máfia no cinema de Martin Scorsese. É como se ele apenas se repetisse em sua primeira metade, simplesmente, para massagear o desejo de alguns que esperam o tipo de filme que gostariam de ver por parte deste cineasta.

O que se mostra algo irônico, já que o autor de cinema em tempos recentes vem criticando – com argumentos bons e ruins – os filmes produzidos pela Marvel Studios, chamando-os de parque de diversões, e não “cinema de verdade”. Curioso, pois Scorsese faz exatamente o mesmo em sua produção Netflix. Só que seu parque temático funciona com os tipos de brinquedos que apenas o próprio sabe construir. Os “dois filmes” dentro de O Irlandês se comunicam entre si, mas apenas um destes te deixará com a sensação de algo fresco, novo; enquanto o outro é somente uma coletânea de sucessos do passado.

Nada de errado, meramente mais do mesmo, em partes. Como um almoço de família que se diverte, contando as mesmas histórias já sabidas, vez após vez.

Apesar disso, o que vai ficar no final com o espectador é a nota melancólica de Scorsese. Mais até que a porta entreaberta que pode anunciar vida, mas provavelmente, perpetuará soledade.

Ao longo da trama, o autor de cinema apresentará alguns personagens secundários – e até menores – que fazem parte do mundo criminoso, e toda vez que o faz, insere breves descrições dizendo o nome, quando e como morreu tal figura. Aí fica claro que o cineasta também está se despedindo do cinema de gangsterismo, como que dizendo adeus a uma era que na verdade já se foi a muito tempo. É Scorsese acenando para o esquecido.

Na onda de honras, a cineasta Ava DuVernay da ótima minissérie Olhos que Condenam louvou O Irlandês de Martin Scorsese dizendo que a obra passa voando – referindo-se a suas 3 horas e meia de duração – , e que este é um filme feito por um cineasta que se sente livre, e que dispõe de todas as ferramentas, todo o tempo, com todo o talento que possui.

Verdade, é exatamente isso mesmo! E, só algo como a Netflix para tornar isto uma realidade. Contudo, é possível usar destas mesmas palavras, e pontuar outra coisa: Martin Scorsese só faz o que faz porque pode, e lhe é dado o espaço, tempo e recursos para conseguir construir uma obra mastodôntica como é O Irlandês. Méritos por ter chegado a essa altura do campeonato, sendo um artesão detalhista ao longo de mais de 50 – quase 60 – anos de trabalho. Mas, porventura, fica no imaginário a possibilidade de ver Scorsese como em O Lobo de Wall Street: tendo que atuar como um regente de um texto que borbulha efervescência e energizar com maestria um tango verborrágico.

Enquanto isso, O Irlandês da Netflix cumpre sua promessa que é encantar com figurinhas repetidas.

Tirando o Al Pacino, claro!

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