“Não existem acidentes na vida. É tudo obra do destino”
Certamente, já se deparou ou tropeçou com alguém pelo caminho que profetizou tais palavras em sua direção. Estejam elas corretas ou não sobre tal provérbio, fato que uma boa porção de nossos dias estão repletos de momentos súbitos que fogem de nosso controle (isso considerando a possibilidade de que realmente temos algum comando de qualquer coisa nessa vida).
Esse é o ponto de partida do comovente e meditativo sci-fi Passageiro Acidental, obra original da Netflix, dirigida e escrita pelo brasileiro Joe Penna, de apenas 33 anos de idade.
Durante uma viagem espacial que vai em direção ao planeta Marte, a tripulação formada pelo trio encabeçado pela comandante da espaçonave Marina Barnett (Toni Collette), médica-pesquisadora Zoe Levenson (Anna Kendrick) e biólogo David Kim (Daniel Dae Kim), se assusta com a aparição de um passageiro clandestino, Michael (Shamier Anderson), engenheiro de lançamento que ficou preso em um dos compartimentos da nave. Sem a possibilidade de retornar à Terra e com recursos diminuindo gradualmente, a equipe se encontra na situação de como farão para todos vivos chegar ao planeta vermelho.
Humano X Espaço
O gênero da ficção científica já passou, e provavelmente, continuará passando por mais transformações enquanto o tempo progride implacavelmente. Sempre relevante exaltar o impacto narrativo que aconteceu em 1968, quando o célebre Stanley Kubrick lançou o revolucionário e filosófico 2001: Uma Odisseia no Espaço, não muito depois, tivemos uma dobradinha vinda do inglês Ridley Scott, Alien – O Oitavo Passageiro (1979) e Blade Runner – O Caçador de Androides (1982), ambos igualmente pioneiros do sci-fi.
A menção de tais nomes vem para mostrar que, além de revolucionar a forma como entendemos uma obra fílmica, também é possível explorar novas janelas da psique e emocional humano, que podem se revelar como uma análise individual, tipo Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019) do sensível James Gray, ou como uma manifestação zeitgeist coletiva, caso do ótimo Passageiro Acidental da Netflix.
É próximo do impossível, enquanto assiste à projeção da obra de Joe Penna, não estabelecer uma associação com os tempos atuais, se for preciso mais especificidade: a pandemia.
O tato emocional de Penna é a semente que dá vida a essa história. Dos pormenores, aos momentos de colossal contemplação, o diretor brasileiro, nascido na capital paulista, interliga os elementos clássicos da ficção científica com filmes de sobrevivência, só que longe do espetáculo histriônico-estridente, ao invés, opta por gradativamente, pinçar as possibilidades mais razoáveis de sobrevivência da tripulação, e ao fazer isso, pratica o inesperado.
Em tempos de colisões idealistas, o cineasta poderia muito bem elevar o tom, e refletir o comportamento bélico social atual, mas não o faz, pois não estamos seguros em nossa casa (Terra), ou em nosso destino (Marte), mas pelo caminho incerto.
A suspensão de nossas seguranças, normalmente, consome a familiaridade de nossas subjetividades, e quando isso acontece partimos para a irracionalidade em nossa fala e atitudes. Mas, Joe Penna é um rebelde por natureza, e o que observamos dentro da espaçonave é admirável, e em especial, inspirador.
O melhor exemplo, fica perceptível pelo personagem interpretado por Daniel Dae Kim. Seria muito fácil vilanizar o biólogo, porém, o diretor imbui tamanha dignidade no texto (que o ator consegue exercitar de forma pungente), e percebemos que a frieza matemática dos números bastava para entender que se encontram em uma situação crítica.
Sagrada ciência
Agora, o aspecto mais emocional em Passageiro Acidental vem pela personagem da médica, papel de Anna Kendrick, que nessa produção original Netflix retorna aos seus melhores momentos na carreira, como em Amor Sem Escalas (2009) de Jason Reitman, ou Um Pequeno Favor (2018) de Paul Feig.
O cineasta Joe Penna, por via dessa personagem, deixa uma nota de agradecimento à ciência e aos profissionais de saúde que, é sempre bom repetir, ainda se encontram na linha de frente (não apenas de corpo físico, mas em espírito, mente e coração) durante a persistente pandemia que nos assola.
A cena, de Zoe e David Kim, dividindo o fardo de carregar um tanque de oxigênio, facilmente nos remete a pouco tempo atrás, quando vimos cidadãos em pequenas cidades no estado do Amazonas dividir o peso dos mesmos, em desespero, tentando levar vida de volta para seus entes queridos.
Zoe, que é uma agente da ciência, age e se move pela fé, mas não a que está relacionada com qualquer forma do divino, porém, a da que estica o braço com amor, na intuição de que fazer o que se faz é o necessário para preservar o que de mais valoroso temos.
É certo que um dia, o relógio irá parar. No entanto, para Joe Penna, enquanto tivermos a centelha da busca pela vida, ele continuará girando. E, se a estrela da manhã vier, que nos alcance pelas costas, pois estaremos olhando fixamente para o nosso norte, seja este qual for.