Um exercício:
Exemplo 1
Um casal está jantando em um restaurante chique em Roma, na Itália. Percebemos a câmera explorando o lugar, observamos os movimentos dos garçons que caminham entre as mesas carregando suas bandejas, também há um violinista tocando… quando de repente, acontece uma grande explosão!
Exemplo 2
Duas amigas estão em um parque de diversões esperando a vez para andarem na maior montanha-russa do lugar. Finalmente, chega a vez delas e sentam juntas em um dos carrinhos. Quando este está subindo para a primeira grande queda, a câmera nota que o carrinho onde se encontram está com dois parafusos em falta. Já no topo, as amigas gritam em êxtase e adrenalina segundos antes da primeira descida.
A pergunta é qual destes dois cenários é um filme do gênero suspense?
Se responderam que é o segundo cenário, então acertaram!
Pena que a produção mexicana Quem Matou Sara? para a plataforma Netflix não conseguiu compreender tal diferença em sua trama de “mistérios”.
Após uma primeira temporada lançada em março de 2021, dois meses depois, temos a temporada seguinte. Na parte anterior, fomos apresentados ao hacker profissional Álex Guzmán (Manolo Cardona), que não sossegará enquanto não encontrar quem matou sua irmã Sara (Ximena Lamadrid), após ficar dezoito anos encarcerado por um crime que não cometeu. Agora, fora da prisão, ele promete se vingar da família Lazcano, chefiada pelo mandachuva César (Ginés García Millán), que julga serem os responsáveis por tudo o que aconteceu com sua querida irmã Sara.
De lugar nenhum a lugar algum
Tem havido uma pequena leva de suspenses na Netflix neste 2021. Recentemente tivemos outras duas produções do gênero, ambas disponíveis no catálogo da plataforma de streaming: A Mulher na Janela e Eu Sou Todas as Meninas.
E, lamentavelmente, todas as três cometem deslizes narrativos, cada uma por uma via. Uma, escorrega em exageros narrativos visuais de dinâmica acelerada demais; a outra possui um texto mega expositivo que deixa zero espaço para qualquer traço de mistério que possa haver na trama.
Agora, Quem Matou Sara? crê na ideia de que tontear, ou “surpreender” o assinante Netflix com novas informações ou descobertas a cada episódio, sempre se aproveitando de flashbacks, é uma forma de manter quem assiste engajado, sem nem perceber que essa estrutura do tipo ‘o buraco é mais embaixo’ é tão viciada, que sempre ficamos na espera de um novo elemento qualquer, e a grande dúvida que leva o nome da série torna-se cada vez mais um ingrediente secundário.
A produção mexicana poderia (se soubesse) praticar um suspense investigativo à la Agatha Christie, como os filmes O Fim de Sheila (1973) de Herbert Ross ou Entre Facas e Segredos (2019) de Rian Johnson; ou mesmo modernizar, como Um Tiro na Noite (1981) de Brian De Palma e Zodíaco (2007) de David Fincher; até envergar para o terror, como Pânico (1996) de Wes Craven.
No entanto, Quem Matou Sara? da Netflix acredita que a solução para um bom mistério é empilhar informações e reviravoltas. Pior: quando põe em prática tais truques, faz para que logo em seguida revele o que realmente aconteceu, como por exemplo, no episódio ‘Os mortos falam’.
Parte de se ambientar e fazer a manutenção de uma atmosfera nebulosa vem de carona na maturação de uma certa ideia ou conceito. Desta maneira, se em uma narrativa, como é o caso desta produção Netflix, tudo o que faz é adicionar dados e mais dados, o que acontece apenas é a revelação dos fatores, sem a mágica do entretenimento ilusionista.
Telenovela
Além do roteiro problemático, também temos o tipo de abordagem que foi executada com este texto. Sendo uma produção de origem mexicana, não é surpresa que tenhamos um tanto da faceta latino-americana na tela. O problema é que o tom severo e soturno que se encontra na cerne do enredo, não orna com essa prática mais vista nas telenovelas de origem latina, que exacerbam cenas melodramáticas de choros intensos enxugados em almofadas de seda marroquina, ou que vociferam nomes compostos (como Fernando Miguel) de modo rigoroso com o dedo em riste.
Assim, fica muito difícil acompanhar esta nova temporada de Quem Matou Sara?, já que é muito complicado levar a sério a performance de boa parte do elenco. Dá para pescar, no máximo, dois momentos genuínos nesta temporada, sendo o melhor destes no episódio ‘Nunca fomos amigos’, entre os irmãos Rodolfo e Chema, papéis de Alejandro Nones e Eugenio Siller, respectivamente.
No mais, encontraremos o básico II das artes cênicas. Sendo o básico I, as habilidades “camaleonescas” de Joey, personagem de Matt LeBlanc na série popular Friends, que ao demonstrar as variações de suas técnicas, interpretou um senhor de idade fechando os olhos e fazendo uma voz áspera; mostrou cansaço, bocejando e se espreguiçando; calor, abanando-se com a camisa; e frio, tremendo enquanto esfrega as palmas das mãos no corpo.
Conclusão
Para os que apreciam este caos de elementos heterogêneos, mais um tanto quanto de histeria, Quem Matou Sara? da Netflix é um prato cheio. Contudo, para quem busca uma produção mais substanciosa, a série de produção mexicana vai te deixar de estômago vazio.
E, não faltaram oportunidades para que fossem discutidos alguns temas interessantes ali, como: a relação de um pai com um filho homossexual; abordagem sobre a ética e moral dentro de um ciclo familiar; a afirmação de que não é possível controlar um império de poder maior; de que a vingança nunca satisfaz a alma; ou mesmo, sobre os perigos e contradições da prática de um fanatismo religioso.
Porém, o que impera nesta produção Netflix é a superficialidade, em todas as frentes. Mas, não se preocupem, isto não acabará no fim desta segunda parte, que termina com o episódio intitulado ‘Eu matei Sara’.
Já que, como dito anteriormente, o buraco é mais embaixo. Em vista disso, ainda irão pegar a pá e cavar mais fundo nessa história… daqui a pouco, chegam nos restos mortais da pobre Sara.