Determinar exatamente o que constitui uma tragédia é um assunto frequentemente debatido. Alguns sustentam que qualquer história com um final triste seria uma tragédia, enquanto outros exigem que a história preencha um conjunto de requisitos (geralmente baseados em Aristóteles) para que possam ser vistas como tragédias.
Da maneira mais simplificada, podemos dizer que tal gênero dramático do originário grego baseia-se no sofrimento humano e, principalmente, nos eventos terríveis ou dolorosos que se abatem sobre o personagem principal. É uma forma de drama que se caracteriza pela sua seriedade e dignidade, pondo frequentemente em causa: os deuses, o destino ou a sociedade.
A intenção da tragédia é invocar uma catarse, ou uma “dor [que] desperta prazer”, para o público. Entretanto, nem todas as peças que são largamente reconhecidas como tragédias resultam neste tipo de final catártico, uma vez que algumas têm finais neutros ou mesmo desfechos dubiamente felizes.
Levando-se tais condições em consideração, podemos afirmar que a qualificada antologia policial The Sinner, que teve sua quarta e final temporada disponibilizada na plataforma da Netflix, encaixa-se direitinho no formato trágico.
O veterano ator Bill Pullman interpreta Harry Ambrose, um detetive policial que investiga crimes cometidos por culpados improváveis, sempre buscando descobrir suas motivações; sendo que apenas Pullman apareceu em todas as temporadas de The Sinner, enquanto o restante do elenco foi mudando para a história de cada temporada.
Nesta quarta e última temporada da produção original Netflix, vemos que o agora aposentado investigador Harry Ambrose viajou ao lado de sua companheira Sonya Barzel (Jessica Hecht) em direção ao norte do estado de Maine para se recuperar do caso anterior. Ali ocorre uma tragédia envolvendo Percy Muldoon (Alice Kremelberg), a filha de uma família proeminente, consequentemente, ele é recrutado para auxiliar na investigação do desaparecimento da garota.
Atração pela morte
Será algo bem natural se alguns assinantes da Netflix sentirem um tantinho de Edgar Allan Poe – notório escritor, poeta, editor e crítico literário americano – em The Sinner. Poe é mais conhecido por sua poesia e contos, particularmente seus contos de mistério e o macabro; ele é amplamente considerado como uma figura central do Romantismo nos Estados Unidos e da Literatura Americana, além de ser apontado como o inventor do gênero da ficção policial.
As obras de ficção mais conhecidas de Edgar Allan Poe são góticas, aderindo às convenções do gênero na intenção de atrair o gosto do público. Seus temas mais recorrentes tratam de questões da morte, incluindo seus sinais físicos, a reanimação dos mortos e o luto, por exemplo.
Bom, basta uma olhada na feição friamente moribunda de nosso protagonista para que notemos que o experiente detetive aposentado viu muita coisa nessa vida, e mais importante, aquilo que viu mais recentemente (investigação e morte de Jamie Burns) traumatizou demais sua mente e espírito.
Pela narrativa de The Sinner, analisamos uma tendência clara do protagonista que gravita à morte como um meio de alcançar algo que possa resgatá-lo de uma vida de agonia e sofrimento. Então, toda vez que testemunhamos o investigador Harry Ambrose fazer de tudo e mais um pouco para descobrir o paradeiro e destino da jovem Percy – interpretada com grande competência por Alice Kremelberg – na realidade, percebemos um tanto de busca pessoal por uma redenção que não consegue encontrar em qualquer outro lugar ou situação.
Hostilizando forasteiros
Tornou-se cada vez mais comum em tempos recentes assistirmos algumas cenas entristecedoras do ignorante preconceito e racismo de alguns tantos cidadãos para com certas minorias da sociedade. Virou rotina encontrarmos tais atos deploráveis em grandes centros europeus, assim como nos Estados Unidos da América, especialmente nas pequenas cidades localizadas em estados de capacidade econômica mais limitados.
Através da linha narrativa da produção desenvolvida por Derek Simonds, detectamos um comportamento muito hostil da maioria dos habitantes do modesto município portuário para com aqueles que são estrangeiros, sejam eles vindos do continente asiático ou de qualquer um dos países pertencentes à América Central. Tanto faz!
O que fica em destaque aqui nessa atual temporada de The Sinner é o comportamento do cidadão americano trabalhador e branco para com todos aqueles que considera como forasteiros. Gente que na opinião deles não é bem-vinda, por vários motivos: cor da pele, idioma, classe social, religião, superstições, e assim por diante.
Lamentavelmente, ainda nos deparamos com estas situações no dia a dia, sempre revelando o pior de nossa sociedade que marginaliza tantas pessoas que só pedem uma única coisa: oportunidades iguais.
O Sonho Americano
Para aqueles que desconhecem: O Sonho Americano (The American Dream) é um caráter moral nacional dos Estados Unidos da América, um conjunto de ideais (democracia, direitos, liberdade, oportunidade e igualdade) em que a liberdade inclui a oportunidade de prosperidade e sucesso, bem como uma mobilidade social ascendente para a família e os filhos, conquistado com muito trabalho em uma sociedade com poucas barreiras.
O termo foi cunhado por James Truslow Adams em 1931, afirmando que “a vida deveria ser melhor, mais rica e mais completa para todos, com oportunidades para cada um de acordo com sua capacidade ou realização”, independentemente da classe social ou circunstâncias de nascimento; também está na Declaração de Independência, proclamando que “todos os homens são criados iguais” com o direito “à vida, à liberdade e à busca da felicidade”.
Se após ler tal explanação e estiver imaginando que se trata de um conto de fadas mágico ou mesmo alguma história da carochinha, não se sinta culpado! É mais que natural deixarmos nossa incredulidade dominar após lermos tamanho festival de bobagens, em vista que a realidade, muito bem retratada nessa última temporada de The Sinner da Netflix, representa o real oposto disso tudo!
Basta assistirem ao doloroso capítulo derradeiro da temporada (Parte VIII) para entenderem a falácia desse “sonho” e o custo na vida daqueles que ficam à margem de tudo, humilhados e silenciados por um sistema estruturado para que seja sempre desta maneira.
Ainda assim, reconhecemos que no centro da narrativa encontraremos vários pecadores de todo tipo, cada um deles almejando, seja orando ou suplicando de joelhos, se algum dia haverá perdão para tudo aquilo que tanto os aflige e atormenta.
Uma verdadeira tragédia… americana.