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Crônicas de San Francisco | Crítica - 1ª Temporada

Uma produção menos chamativa, Crônicas de San Francisco parece ser pensada para atrair os fãs da versão original que foi ao ar nos anos 90, mas acaba entregando histórias perfeitamente aproveitáveis para um novo público internacional, ainda que sua abordagem não tenha a mesma relevância que provavelmente tinha, décadas atrás.

Ellen Page fica responsável por chamar a atenção de uma nova geração para mais este “revival” que dá continuidade às histórias de Mary ann Singleton (Laura Linney) e Anna Madrigal (Olympia Dukakis), originalmente protagonistas de um livro escrito por Armistead Maupin, que eventualmente se tornou uma adaptação televisiva em 1993, com continuações em 1998 e 2001. Claramente, novos espectadores estão adentrando uma trama que já possui uma enorme bagagem para aqueles familiarizados com esta comunidade de San Francisco, e como não imagino que a série possui um impacto reconhecível no Brasil, acredito que praticamente todos nós nos encaixamos neste grupo recém-chegado.

É preciso deixar claro que Crônicas de San Francisco não é uma série com um apelo tão abrangente quanto várias outras produções da Netflix, e seus longos dez episódios podem desencorajar espectadores menos atraídos pelos temas que a série discute. Aqueles que decidirem embarcar nestas histórias, no entanto, poderão encontrar uma narrativa confortável que explora seus personagens de forma interessante, e constrói um retrato envolvente da comunidade “queer” que habita São Francisco.

Seguindo sua proposta de revitalização, a série é marcada por comparações entre as diferentes gerações que a protagonizam, e evidencia as diferentes perspectivas destes personagens sobre o universo LGBT. Em uma estratégia eficiente, somos introduzidos neste cenário através da chegada de Mary-Ann, que precisa encarar as mudanças deste ambiente depois de vinte anos longe de seus amigos, bem como conhecer os novos personagens que representam as evoluções de perspectiva sobre esta comunidade.

Parte desta atmosfera confortável que permeia a temporada é um resultado da maneira como Crônicas de San Francisco trata elementos que poderiam ser considerados “transgressores” por alguns, com naturalidade e flexibilidade. Tal qual no bar “Corpo Político” em que a personagem de Page trabalha, qualquer um pode ser o que quiser sem preconceitos, e ter suas qualidades e defeitos admirados. Ignora-se, de forma revigorante, a estigmatização e a generalização que marca retratos parecidos em outras produções.

Não há espaço algum para questionar que Crônicas de San Francisco é uma série voltada para a comunidade “queer”. A bandeira LGBT que encerra cada episódio é apenas mais um dos detalhes que evidencia esta abordagem, além de boa dos nomes por trás da produção fazerem parte desta comunidade. Os principais dilemas abordados por aqui são característicos de tramas comuns à este público, mas também são construídos e retratados de forma universalmente relacionável, tornando possível definir a série como, acima de tudo, um retrato honesto sobre pessoas comuns.

O choque de gerações produz discussões interessantes e relevantes para a nossa época atual, apresentando argumentos sobre tópicos como “local de fala” e rotulação. A intenção por aqui não é construir um símbolo de resistência ou de conflito contra o lado conservador e intolerante dos EUA (como vemos em tantas outras produções), mas sim, exibir as características e debates que permeiam este cenário de forma convidativa e acolhedora.

Diversas perspectivas da comunidade “queer” são retratadas com sensibilidade em Crônicas de San Francisco, em diferentes núcleos narrativos que acompanham os romances, frustrações, aspirações e compreensões que compõem estes personagens. Tal dedicação à não deixar que nenhum personagem possa ser tomado como uma “caricatura” do grupo que representa, é o que torna a série mais envolvente e distinguível, mesmo que suas histórias possam não ser tão atraentes ou mirabolantes o suficiente para engajar um maior número de espectadores.

Em meio aos dilemas pessoais que preenchem a maior parte dos episódios, temos um toque de suspense para manter o público intrigado e curioso pelo próximo episódio. Anna, em seus noventa anos de idade e admirada por todos que a cercam, começa a receber cartas ameaçadoras, que a chantageiam a abrir mão da “icônica” casa onde abriga este grupo de personagens. Conforme a série progride, vamos descobrindo os motivos por trás desta chantagem em um desenvolvimento compassado, sem nunca elevar sua tensão para muito além da atmosfera descontraída da série.

Considerando a dinâmica envolvente deste grupo e o ambiente majoritariamente tolerante em que se encontram, fico pensando que, em um universo paralelo, a indústria atual provavelmente já teria transformado esta série em uma típica sitcom de platéia, e esta se tornaria a “The Big Bang Theory” da comunidade “queer”. Aponto este pensamento, pois Crônicas de San Francisco é justamente uma recusa de que vários dos comportamentos retratos por aqui são qualquer coisa além de “normais”, e exibe as características desta comunidade com um orgulho que, muitas vezes, levaria a indústria televisiva a transformar este impudor em comédia.

Mas é justamente esta aceitação da realidade com que a série retrata San Francisco que a torna tão fácil de se acompanhar. E sua falta de ambição por tramas mais expressivas ou reviravoltas marcantes soa condizente com um cenário televisivo prestigioso que é característico do século passado. Percebe-se, então, as influências de suas encarnações anteriores, o que acaba produzindo uma obra distinta em meio ao acervo atual da Netflix, mas que também não possui o mesmo apelo ao público de hoje em dia.

O oitavo episódio de Crônicas de San Francisco é o único que realmente se dispõe a tirar o espectador deste conforto, nos levando para uma época onde acompanhamos a trajetória de Anna, e como a admirada personagem lidou com circunstâncias ainda mais angustiantes do que a nova geração percebe ao seu redor. È um desvio necessário para se concluir a discussão proposta pela série, que procura demonstrar como ninguém possui a compreensão absoluta necessária para se julgar os atos de outra pessoa.

É um mundo livre em Crônicas de San Francisco, o que não quer dizer que estamos diante de uma idealização intocada pelos defeitos da sociedade, ou principalmente, do ser humano em si. Membros da comunidade LGBT com certeza irão encontrar uma sensação de pertencimento relevante nestes retrato, mas qualquer pode se identificar e se entreter com estas histórias, caso esteja procurando este conforto.

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