Dando continuidade a aposta da Netflix em produções sobre psicopatas e criminosos charmosos, Dirty John – O Golpe do Amor é uma série que deve chamar a atenção do público por sua trama desconcertante, mas que também requer uma certa paciência do espectador para que seus lentos desenvolvimentos possam ser aproveitados.
A trama de Dirty John – O Golpe do Amor é baseada em uma história real ( o que, por si só, já costuma chamar a atenção do público), retratada em um podcast do jornal Los Angeles Times que expõe as façanhas de um golpista chamado John Meehan, focando mais especificamente em sua relação com a empresária Debra Newell, e nas consequências desse relacionamento abusivo e conturbado. Meehan (interpretado por Eric Bana) é construído de forma compassada para ir, gradativamente, se tornando mais ameaçador aos olhos do espectador, em uma temporada que procura retratar as diferentes perspectivas e contextos que compõem estas circunstâncias chocantes.
De início, a série apresenta os personagens com pouco aprofundamento, intencionalmente retratando situações comuns e facilmente identificáveis para o público, com relação à forma como nos relacionamos no mundo atual. Debra é uma personagem com maior disposição para confiar e se apaixonar por seu pretendente, John é carismático e ligeiro para consertar qualquer atitude mais condenável, e as filhas de Debra (interpretadas por Juno Temple e Julia Garner) poderiam ser vistas, apenas, como pouco dispostas a aceitar um novo namorado na vida da mãe. Este cenário ordinário vai sendo alterado com cautela, dando cada vez mais motivos para desconfiarmos das condições e intenções de John.
A série acaba sabotando uma parte significativa de seu engajamento ao apresentar Debra como uma personagem ingênua, evidentemente suscetível à manipulação e à negação. Suas filhas, embora já fiquem com a função de desconfiança desde o começo, não são colocadas como protagonistas à serem seguidas, o que poderia ter tornado estes primeiros episódios mais fáceis de se acompanhar. Ao invés disso, a experiências inicial acabará sendo, para muitos espectadores, um tanto frustrante, onde sabemos que John não é tão confiável, e Debra apenas vai sendo levada por esta manipulação.
E embora Dirty John – O Golpe do Amor nunca chegue a se tornar um suspense psicológico propriamente dito, as maquinações de John e as revelações sobre seu passado são capazes de manter o interesse do espectador, ainda que de forma mais novelesca do que se esperaria. O ritmo da trama é desacelerado pelos vários diálogos pragmáticos e sequências de rotina, com uma montagem que busca construir uma atmosfera desconcertantemente lenta.
Considerando o material original, é compreensível que a série procure estender sua narrativa com episódios focados em outras perspectivas e contextualizações do passado, retratando momentos da vida de John antes de seu primeiro encontro com Debbie, por exemplo.
Temos um episódio voltado para a infância de John, e a influência da mentalidade destrutiva de seu pai. Outro episódio que foca na mãe de Debbie, e retrata como a negação e a suscetibilidade podem ter raízes mais profundas no psicológico da personagem. Vemos como John escapou da polícia anteriormente, e o penúltimo episódio ainda remonta momentos da temporada, mas desta vez pela visão do psicopata. Tudo isso acaba contribuindo para uma atmosfera e uma narrativa mais envolventes, mas também pode cansar o espectador mais ansioso por reviravoltas e resoluções.
Eric Bana fica responsável por transparecer o porte ameaçador deste fascinante antagonista. Sempre galante e carismático, mas que também precisa soar perturbador sem perder a serenidade. John consegue passar suas ameaças com apenas um olhar mais intenso, e Bana merece reconhecimento pela consistência desta postura, mantendo o personagem igualmente tão intrigante, quanto detestável.
Connie Britton, por sua vez, merece ainda mais elogios. Como citei anteriormente, sua personagem não é fácil de se seguir com entusiasmo, e os vários momentos em que Debbie se recusa a aceitar a realidade ou demora a tomar uma atitude irão fazer com que alguns espectadores condenem a personagem. Ainda assim, a atriz consegue balancear esta ingenuidade (onde suas expressões passam um irritante estado de perplexidade) com uma construção orgânica que busca colocar em perspectiva os julgamentos e repreensões colocados sobre a pessoa real que passou por estas situações.
Provavelmente, os espectadores que terminarem a série “You” devem ver Dirty John – O Golpe do Amor em sua lista de recomendados. A recomendação, no entanto, pode ser um tanto equivocada, devido as diferentes abordagens. “You” abraça suas peculiaridades com entusiasmo, enquanto Dirty John procura empregar uma execução mais compassada que atrairia classificações mais “prestigiosas” (em outras palavras, a série quer ser considerada para premiações). A execução acaba conseguindo obter tais resultados apenas parcialmente, e diferente da comparação, seu consumo deve ser melhor aproveitado com um episódio de cada vez, ao invés de uma grande maratona.
Há alguns momentos de tensão na série dignos de nota, enquanto outros não serão tão excitantes quanto o esperado. No entanto, é justo dizer que a “cena de ação” do último episódio chega a elevar a construção da série, tanto no que diz respeito à sua função como um clímax surpreendente, quanto na execução da cena em si (chocante, para dizer o mínimo, quando comparada com o que vinha sendo apresentado, até então). A trilha da série, por outro lado, não costuma trazer o clima de ansiedade marcante que poderia, para tais sequências, utilizando composições eletrônicas genéricas e podendo ser classificada, apenas, como funcional.
E com uma conclusão definitiva para os arcos da temporada, Dirty John – O Golpe do Amor se encerra com o jornal LA Times abordando Debbie para contar sua história, originando o podcast em que a série viria a se basear. Sua intenção de ser um retrato incitante de como tais manipulações e abusos podem ocorrer onde menos se espera, não é tão eficiente quanto acredita ser, mas produz um drama válido de se acompanhar, e seus últimos episódios acabam compensando parte do ritmo lento que poderia afastar alguns espectadores. Não vejo como uma segunda temporada poderia ser produzida, uma vez que já exploramos, até mesmo, o passado de John com outras mulheres. Mas, caso a série encontre o mesmo sucesso de “You” na Netflix, não me surpreenderia nem um pouco saber que temos, aqui, mais uma série antológica em nossas mãos.