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Inacreditável | Crítica - 1ª Temporada

Com atuações memoráveis e um roteiro que exibe uma habilidade admirável em transportar fatos reais para sua narrativa fictícia, Inacreditável é uma série que merece reconhecimento dentro das conversas de premiações, e acaba se destacando dentro do acervo da Netflix. 

“Porque mesmo com boas pessoas, mesmo com pessoas que você pode confiar, se a verdade é inconveniente, se a verdade não faz sentido, elas não acreditam”

Baseada no artigo ganhador do Pulitzer “An Unbelievable Story about Rape”, Inacreditável procura abordar temas desconfortáveis de forma impactante, porém assimilável.  À primeira vista, a minissérie dá entender que dedicará a maior parte de seus esforços à questão envolvendo a “credibilidade” de vítimas de estupro e abuso sexual, um tópico que foi  amplamente discutido dentro das produções Hollywoodianas dos últimos tempos. O primeiro episódio da minissérie foca exclusivamente no caso de Marie Adler (Kaitlyn Dever), uma jovem que foi contida e estuprada dentro de sua própria casa, e cujos depoimentos à polícia acabaram sendo repetidos e escrutinados à exaustão, eventualmente apresentando divergências.

 O bom senso e a racionalidade ditam que é sempre essencial acreditar na vítima, para que então o devido processo possa ocorrer para determinar a verdade da situação. Mas a série não está apenas interessada em reiterar esta máxima, e sim observar as consequências de um sistema falho, ainda que, infelizmente, plausível dentro da nossa sociedade atual. Afinal, o devido processo em questão acabou levando às circunstâncias onde Marie se viu encurralada pelas consequências de sua acusação, levando a consequências por falsa acusação, e a bola de neve só aumentou daí em diante…

É um piloto impactante, além de adequadamente focado, priorizando o aspecto humano desta história antes de dar qualquer início à investigação que realmente preencherá o resto da temporada. A perspectiva de Marie continua sendo retratada ao longo de todos os próximos episódios, mas a maior parte do foco agora se volta para os esforços de duas detetives, três anos depois, que se deparam com a trilha de um estuprador serial. As personagens ainda não sabem da existência de Marie, mas para nós, espectadores, o peso do primeiro episódio nunca deixa de voltar à tona durante cada etapa desta busca. 

Muitos dos elogios em volta de Inacreditável serão devidamente direcionados ao elenco da minissérie. Toni Collette pode ser o nome mais chamativo entre as protagonistas, mas apesar de sua interpretação ser plenamente digna da expectativa, foi Merritt Wever quem realmente me impressionou com o equilíbrio apresentado em sua personagem. As detetives contrastam bem entre si, produzindo parte da típica dinâmica de dupla em que o gênero costuma encontrar conforto. Mas enquanto Collette fica com o papel de “policial durona” e mais experiente, Wever é responsável por entregar uma representação mais humanizada de sua personagem, cuja personalidade parece ser emotiva, mas cercada por uma frieza profissional eficiente. 

A maneira como muitos destes personagens são escritos visando evitar certas vilanizações e glorificações é também um dos grandes trunfos desta narrativa. Começando pelos policiais que colheram o testemunho de Marie, e que poderiam ter sido representados de forma acusatória por sua negligência, mas acabam transparecendo a racionalidade de seus pensamentos de forma orgânica e compressível, apesar dos terríveis equívocos. As detetives, também, não são elevadas ao posto de “grandes salvadoras” imaculadas, expondo suas falhas de julgamento e linhas de pensamento igualmente palatáveis (com exceção do final emocional, claro, onde toma-se um pouco mais de liberdade para alcançar uma resolução sentimental). 

Outro ponto do roteiro que também merece destaque, é a caracterização e as diferentes reações de cada vítima que aparecem ao longo da história. Tal diversidade era essencial para ilustrar alguns dos próprios argumentos que a série expõe sobre a situação inicial de Marie, e acaba enriquecendo o cenário da investigação, além de proporcionar um maior envolvimento emocional por parte do espectador.

Kaitlyn Dever, por sua vez, teve sua carreira completamente revirada este ano. Depois de ter sido elogiada pelo filme “Booksmart”, a atriz que ficou ligeiramente conhecida por “Last Man standing” acabou entregando uma performance comovente, em um papel onde pequenas interpretações fazem toda a diferença para não tornar a personagem apenas uma combinação de seus reflexos na mídia. O sofrimento de Marie é evidenciado, obviamente, mas a atriz também transpõe o resigno da personagem com a sutileza necessária para não acabar desfigurando o apelo de se estar acompanhando uma obra baseada em fatos reais. 

A progressão da investigação consegue manter-se tão empolgante quanto se espera de qualquer drama investigativo que lide com assassinatos e sequestros. As escalas e riscos vão aumentando gradualmente ao longo da trama, engajando o espectador enquanto mais suspeitos e vítimas vão encaixando novas peças. Ainda assim, o ritmo e envolvimento decaem um pouco no meio da temporada, formando uma “barriga” dispensável antes do passo ir sendo retomado em direção à conclusão. Ainda que os roteiristas não tenham propriamente desperdiçado o tempo que tinham em mãos, sinto que seis episódios teriam sido ideais para contar esta história, 

E enquanto o roteiro e as atuações podem elevar Inacreditável para o patamar das grandes séries deste ano, a estética da minissérie mantém-se tão desinibidora para estes outros aspectos serem ressaltados, que chega a ser monótona em alguns momentos. O mesmo pode ser dito da trilha sonora, que raramente excede a função de manutenção da atmosfera emocional que se equilibra entre as duas linhas narrativas. Fica evidente o quanto a direção dos episódios prezou muito mais a aproximação desses personagens para com o espectador, do que qualquer floreio visual que pudesse tomar a dianteira da cena. 

Inacreditável se dispõe a contar uma história baseada em fatos reais que envolve tópicos relevantes, embora ainda sensíveis, para o público atual. No entanto, nunca se deixa cair no mero cumprimento da prestação de um serviço ou discurso, e conclui sua trama de forma produtiva, além de gratificante. Apesar da narrativa ser emocionalmente desgastante em alguns pontos, a sensação de otimismo que fica após o último episódio é muito bem vinda. Narrativas contidas e focadas de minisséries como esta permitem uma experiência mais consistente e distinguível para o espectador, e dado o bom resultado visto por aqui, a Netflix deveria considerá-las com mais apreço.  

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