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Irmandade | Crítica - 1ª Temporada

Aproveitando um roteiro notavelmente bem orquestrado, o elenco de Irmandade entrega momentos memoráveis, e compõe mais uma obra nacional para a Netflix que merece atenção internacional, mas que nunca deixa de conversar diretamente com o público brasileiro que está familiarizado com muitas das circunstâncias que definem a série. 

Irmandade se propõe a contar, ao menos na superfície, a trajetória da ascensão de uma facção criminosa dentro de um presídio de São Paulo. Seu Jorge encabeça a série como Edson, um personagem condenado desde jovem por um crime menor, mas cuja vida dentro da cadeia o levou a erguer uma facção que lutasse contra a tortura e a opressão imposta pelos administradores do presídio. Mas enquanto a curiosidade por esta ascensão possa ser o fator que mais chame a atenção do espectador, o real interesse da série está na exploração de conceitos de moralidade, e na importância das diferentes perspectivas dentro dessa discussão. 

No cenário de produções nacionais, histórias que giram em torno do mundo do crime não são incomuns e, muitas vezes, acabam sendo vistas por uma parcela do público como “glorificações” equivocadas, enaltecendo criminosos de forma romântica. É claro que este apontamento não costuma levar em consideração a origem das intenções de produtores que buscam, acima de tudo, escancarar realidades pouco exploradas, ou mal representadas para o público geral. Obras famosas como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, por exemplo, atraem a atenção da mídia por conta de sua violência explícita, mas são construídas com o intuito de fazer com que o choque das situações provoque a reflexão no espectador. E para escapar do possível fetichismo, ou da tal “glorificação”, existem algumas escolhas interessantes que são tomadas pelo roteiro de Irmandade para garantir um resultado mais produtivo.  

Começando pela escolha do foco desta história, onde embora haja bastante destaque para o personagem de Seu Jorge, o real protagonismo fica por conta de Cristina, interpretada por Naruna Costa. O diretor Pedro Morelli comentou em uma coletiva para imprensa, sobre os motivos desta escolha específica, onde aponta que a série se passa nos anos 90, justamente pela época proporcionar um contexto onde o papel da mulher dentro de uma história como esta, era muito mais relevante (não havia celulares dentro da cadeia como hoje em dia, e as mulheres eram ainda mais essenciais para a coordenação dos grupos em liberdade). 

Cristina começa a série distante da posição de seu irmão, o qual não vê a muitos anos. Como advogada, a personagem não é estranha as complexidades de dilemas morais e legais, mas decide sacrificar sua ética profissional para ajudar Edson, que está sendo claramente torturado dentro da cadeia. Esta, no entanto, é apenas a primeira de uma série de difíceis escolhas enfrentadas pela protagonista, compondo uma trajetória que força o espectador a considerar as circunstâncias de cada penosa decisão de Cristina, ao invés de simplesmente julgá-la por qualquer ação. 

Esta atenção pelas consequências de cada ato da protagonista é um dos aspectos essenciais para se evitar a banalização ou a romantização desta história. A tensão é constante em cada situação, e nenhum destes personagens é construído como uma mera caricatura representativa dentro do mundo do crime. O único problema desta execução, no entanto, é que toda esta tensão acaba gerando poucos respiros para a trama, e pode se tornar um tanto cansativo para espectadores menos dispostos. Uma maratona da série não é recomendada, apesar dos ganchos narrativos colocados no fim de cada episódio serem difíceis de ignorar. 

Irmandade é uma série impactante, não apenas por conta de seus tópicos chamativos, mas também pela construção de sua narrativa. O roteiro faz um bom trabalho ao apresentar seus personagens principais e direcionar a afeição do espectador para onde seja mais produtivo. Além disso, também se mantém uma atmosfera de perigo em volta das dissimulações de Cristina que já é envolvente por si só. 

Mas o melhor exemplo de como este roteiro consegue engajar o espectador, e manter sua narrativa fluindo com uma urgência preciosa, é o alinhamento desta história com a vitória do Brasil na Copa do Mundo de 94. O evento, familiar ao público brasileiro, é retratado gradualmente conforme a facção planeja uma fuga para Edson, envolvendo uma explosão que precisa ser sincronizada com algum gol do Brasil (e os fogos de artifício que sempre seguem). Alinhar a tensão de um plano tão arriscado, com a tensão caracteristicamente nacional que marca as torcidas pela seleção de futebol (e em um marco tão conhecido como a conquista do tetra) foi uma escolha digna de nota dos roteiristas para engrandecer esta sequência de episódios. 

A direção dos episódios sabe capitalizar em cima do que costuma ser proposto pelo roteiro, mas o real impacto de diversas cenas vem por conta das atuações de um elenco visivelmente esforçado pela representação adequada de suas perspectivas e trajetórias. Discutir a moralidade destes personagens só se torna uma tarefa produtiva, se conseguirmos enxergar os dilemas sendo expostos à nossa frente, e estes precisam ser retratados pelo conflito estampado na expressão de cada personagem. Cristina, é claro, fica com a maior parte destes conflitos, e Naruna Costa constrói uma progressão mesmerizante para a personagem, gradualmente derrubando algumas barreiras (inocências, talvez) que pareciam mais presentes na jovem advogada do começo da série. 

Frases como “Palavra num faz curva” são eficientes para a condição destes personagens, mas também confrontam a noção de que “o certo” é ditado por quem julga. O espectador que se coloca no lugar de Cristina durante várias de suas decisões, com certeza não encontrará um espaço confortável para apenas julgar. A lealdade entre estes personagens é posta à prova o tempo todo, e nem sempre parece merecer prioridade dentro das circunstâncias. 

Irmandade é uma produção nacional de encher os olhos, e entrega tudo que poderia se esperar de um time tão forte quanto o que temos na direção, roteirização e atuação de uma série como esta para a Netflix. O final abrupto da temporada é menos marcante do que eu esperaria, dada a trajetória repleta de tensão, mas o espaço deixado para uma eventual segunda temporada promete proporcionar ainda mais emoção para estes personagens, e discussões ainda mais produtivas sobre as morais duvidosas deste cenário de barbáries.  

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