Uma produção inevitavelmente polêmica de José Padilha, O Mecanismo retorna para sua segunda temporada mantendo o foco na trajetória e nos dilemas de seu personagens de maneira apropriada, tentando produzir uma visão supostamente imparcial de um escândalo nacional.
“Mas o que me movia nessa história, a melhor coisa que eu fiz, foi esquecer o tempo, esquecer a ideologia, e pensar única e exclusivamente no mecanismo…”
Essa frase de Ruffo, personagem de Selton Mello, parece ser pronunciada pela série como um todo, que constantemente busca colocar em evidência, a sua missão de se manter isolada de qualquer posição política. O Mecanismo quer aproveitar estes eventos conhecidos do público para incitar uma discussão sobre conceitos políticos, muito mais do que procura retratá-los de forma elucidante, como se propusesse “mostrar a verdade” ou imprimir uma revisão dos fatos registrados pela mídia (ainda que certos momentos da série possam contestar a imparcialidade da mídia em si).
A intenção por aqui, não é dar uma resposta objetiva sobre os problemas da política nacional brasileira, e sim demonstrar construtivamente o quão complexa é a pergunta em questão. É claro que diferentes interpretações podem enxergar algumas execuções mais tendenciosas que outras, ou apontar um discurso característico do produtor e utilizar este apontamento para revirar a narrativa da série, mas naquilo que claramente se propõe, O Mecanismo retrata os eventos políticos superficialmente, exibindo apenas o que julga necessário para a evolução de seus protagonistas, e como estes encaram suas situações e escolhas.
Verena (Caroline Abras) e Ruffo são marcados por desilusões e frustrações que buscam gerar um sentimento de revolta no espectador, como se suas trajetórias servissem para estimular uma reflexão incômoda que torna-se inevitável depois de ser vislumbrada. Como se representassem fases diferentes deste estado de frustração, Ruffo já carrega diversas consequências de sua obsessão, enquanto Verena vai se transformando em uma personagem mais pragmática, cansada de assistir o mundo fugir de seu controle, quanto mais ela o encara.
Ruffo, inclusive, projeta suas frustrações na figura de Ibrahim, um antagonista salafrário o suficiente para carregar boa parte da repulsa do espectador, incorporando todos os aspectos de personalidade mais condenados pela narrativa. O personagem de Selton Mello é quem procura expor a complexidade das perguntas que a série propõe, e acaba tendo que encarar a dificuldade de deixá-las sem resposta, ou morrer tentando. Sua perseguição de Ibrahim toma conta de boa parte da trama, justamente para manter o foco da série em uma linha mais contida, com abordagens mais reconhecíveis para o espectador.
Enquanto isso, O Mecanismo também se dispõe a explorar representações de figuras famosas destes eventos, como o juíz Rigo (Otto Jr.), a presidente Janete ( Sura Berditchevsky) e o ex-presidente Gino (Arthur Kohl). Estas representações são descaradas e não escondem uma interpretação baseada em registros da mídia, mas são construídas de forma produtiva para aquilo que a série busca discutir, com o processo de heroificação do juíz responsável pelos casos da operação e o impacto que o ex-presidente causa em diferentes personagens, quando os encontra. A maneira como estas figuras são vistas por outras é o que realmente importa para a discussão, mais do que suas retratações (Se estão equivocadas, ou não, é um outro assunto que não contribui para a análise da narrativa).
Dando continuidade à sua proposta de ser um “thriller” empolgante, O Mecanismo retoma a perseguição do último empreiteiro do “Clube dos 13”, o temível Ricardo Brecht. Apresentado como o mais inteligente do grupo de acusados, o personagem traz uma tensão funcional para a temporada durante o seu processo judicial, antes que as tramas se voltem para os acontecimentos de maior escala e impacto que encerram esta leva de episódios.
A dinâmica entre os protagonistas e antagonistas desta série, todos claramente definidos e enaltecidos em suas posições, é o que torna a narrativa divertida e engajante nesta produção da Netflix, que com certeza poderia ser aproveitada por um público internacional alheio às polêmicas e ao caos político do cenário brasileiro. Sua direção é vistosa, repleta de longos planos cativantes e um ritmo confortável para os episódios, que dividem a atenção entre os diferentes núcleos, sempre mantendo um equilíbrio atraente entre as escalas de cada um.
Eis que conforme nos aproximamos da conclusão, as reflexões de Ruffo sobre o que constitui O Mecanismo se aprofundam e se complicam, revelando um esquema mais abrangente do que a limitada visão do personagem poderia conceber, de ínicio. Na visão geral, enquanto isso, o processo de impeachment da presidente Janete é discutido e protocolado com sequências que buscam evidenciar o cinismo destas figuras políticas retratadas pela série. As encenações da votação, inclusive, enaltecem o aspecto de “espetáculo” que este processo acaba ganhando para quem o vê de fora.
Discute-se, então, a questão da corrupção como apenas uma parte daquilo que compõe O Mecanismo, abrindo espaço para discussões sobre a inerência destas práticas dentro do ambiente político, e sobre o que realmente compõe aquilo que chamamos de “poder”. Figuras “poderosas” seriam aquelas que possuem uma imagem poderosa, intocável por qualquer repercussão negativa? Ou seriam aqueles detém o maior poder econômico, sempre essencial para processos de grande escala como eleições democráticas? No fim, pode não ser nem um nem outro, e sim aquele que aceita (e surfa) o movimento das engrenagens como sendo naturais.
“A opção do PT matou a esquerda. E com a direita fisiológica e desonesta entrando na mira da Lava-Jato, formou-se um vazio bem perigoso. Um vazio que poderia ser preenchido pelas forças repressivas de um passado não muito distante”.
O momento em que Ruffo faz esta observação durante o último episódio, é talvez a mais expressiva argumentação da série sobre o cenário que está aproveitando para contar sua história. Fica claro que O Mecanismo está ciente das evoluções deste debate político que marcou a última década, e onde ele se encontra atualmente. Com esta frase, talvez possamos entender que a série estaria disposta a encarar questões atuais que tornariam a sua missão de “imparcialidade”, ainda mais difícil.
As aspas que coloco em “imparcial”, no entanto, não são condenatórias, e sim um reconhecimento de que obra nenhuma poderia alcançar tal status frio e calculista. Toda história terá a sua perspectiva, mas pelo menos, O Mecanismo tem intenções bem executadas que podem ser aproveitadas além de suas ligações com a realidade, e merece atenção do espectador casual que estiver procurando uma narrativa envolvente.