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Você | Crítica - 1ª Temporada

A mais nova série a entrar para o catálogo da Netflix, Você, traz tudo que o público-alvo poderia pedir de uma produção como esta, mas também não deveria ser deixada de lado por aqueles que não costumam ser agradados por histórias que cobrem rotinas de relacionamento.

Você acabou sendo uma grata surpresa neste final do ano. No primeiro episódio, já era possível identificar a proposta da série de abordar seu protagonista, Joe (Penn Badgley), o jovem e galante vendedor de livros, com uma perspectiva questionável. A intenção era justamente deixar evidente a necessidade de se questionar o comportamento do personagem, uma vez que ele mesmo (também narrador da história) não parecia capaz de julgar suas próprias atitudes ou enxergar o egoísmo de seus atos.

Além de Joe, também passamos um tempo considerável seguindo a trajetória e os pensamentos de Beck (Elizabeth Lail), uma jovem escritora insegura. Cercada por uma vida de futilidades, a personagem pede por um livro chamado “Personagens Desesperados” no primeiro episódio, ironicamente prenunciando as construções e evoluções que veriamos nestes personagens, que não buscam nada além do amor, e são capazes de alterar suas próprias visões do mundo por conta de princípios que, se fossem negados, fariam com que os personagens precisassem confrontar a solidão e a carência que os assolam.

Do lado de fora da série, não há dúvidas que o comportamento de Joe é absolutamente condenável, para dizer o mínimo. No entanto, dentro de cada episódio, a maneira como a série exibe a perspectiva doentia de Joe ( ele enxerga seus atos como sendo uma prova absoluta de seu amor, além de acompanharmos sua controversa bússola moral) faz com que o espectador consiga se identificar com os sentimentos e frustrações do personagem.

Os traços do típico serial-killer charmoso e intrigante estão todos aqui. Somos levados a compreender as motivações por trás dos crimes, sejam estes pequenos ou grandes, e observamos como o personagem é plenamente capaz de atitudes admiráveis, conquistando a simpatia dos personagens ao seu redor (e, por consequência, do público). De forma eficiente, a relação de Joe com o jovem Paco (Luca Padovan), sempre altruísta e moralmente admirável, também é responsável por nunca deixar o personagem se distanciar muito da posição empática em que a série o coloca com sua narração.

Fãs de séries de suspense focadas em personagens psicopatas deslumbrantes, podem acabar encontrando uma abordagem distinta para os temas tratados repetidamente em produções deste tipo. Embora a tensão possa nunca chegar à mesma escala que vemos em séries como “Dexter”, a antecipação e a urgência são palpáveis, constantes, nunca deixando a série cair na monotonia ou na redundância. E todo este clima é construído em cima de um retrato muito interessante (além de perturbador) da maneira como funcionam os relacionamentos contemporâneos, protagonizados por uma geração que é, ao mesmo tempo, descomprometida e ansiosa, além de egocêntrica.

Em vários momentos, a perspectiva absurda de Joe e suas atitudes criminosas são apenas uma forma de se levar ao extremo, as representações das diferentes fases de um relacionamento nos tempos atuais, constantemente cercado por redes sociais, paranóia, frustração e apatia ( lidar com o ex, lidar com os amigos da pessoa, descobrir mais sobre a família, sobre os hábitos, aspirações…). Talvez seja por isso que não é difícil para o público criar uma identificação, tanto com Beck, quanto com Joe.

Suas personalidades não são tão diferentes do que vemos no dia-a-dia das gerações atuais, e muitos de seus absurdos já são vistos como corriqueiros pela sociedade desconexa em que vivemos. É quando o protagonista acaba levando seus princípios ao extremo, que o espectador percebe o problema por trás de tal convivência. Em Você, a tensão surge repentinamente, contrastando às aparências, e a história se move com reviravoltas o suficiente para espectador nenhum ficar entediado.

Millennials (geração da qual eu mesmo faço parte) possuem hábitos de comunicação que seriam vistos como intrusivos ou inconsequentes por gerações anteriores. A maneira como justificamos nossas atitudes e encontramos formas diferentes de validar nossas mentalidades não conhece limites. Em Você, os personagens testam estes limites, mas qualquer senso de questionamento ou auto-entendimento já ficou para trás, e tentar buscar este tipo de reflexão parece deixá-los ainda mais confusos e incapazes de lidar com a situação. Em um melodrama equilibrado, perfeito para o público-alvo da série, este é um terreno extremamente frutífero para o roteiro.

AInda assim, Você nunca cai na armadilha de excessivamente romantizar as obsessões de seus personagens. O espectador pode ser levado a pensar que, talvez dentro do contexto da série, algumas atitudes possam parecer genuinamente “românticas”, mas Joe sempre acaba deixando transparecer o seu egocentrismo acima de tudo (como quando condena hipocritamente as atitudes de Peach, tão semelhantes às suas), e invalida todo o seu principio do “amor acima de tudo” sem nem perceber.

E sobre este tal princípio que move boa parte da trama, o roteiro explora muito bem a maneira como os personagens parecem não apenas estar alheios, mas também não estão dispostos a enxergar a contradição destas visões fantasiosas sobre relacionamentos. É nessa confusão interna que Você acaba tirando suas melhores sequências, e provocando realizações notavelmente eficientes para a evolução dos personagens, e como nós os enxergamos daqui em frente.

Essencialmente, basta dizer que, no final, percebe-se o quanto o “amor” de Joe não poderia ser absoluto sem um altruísmo igualmente absoluto. O próprio personagem (tão iluminado por suas leituras) percebe esta falha de raciocínio, e acaba sendo colocado no devido lugar de “vilão” que tanto evitou durante toda a temporada. Beck, por sua vez, possui um monólogo bem interessante enquanto escreve seu livro no episódio final, questionando o quanto se deixou levar por seus sonhos e aspirações, e reconhecendo como ignorou o próprio bem-estar, em função de uma noção plástica sobre como deveria ser amada. Nada mal para uma série que aparentava procurar agradar seu público apenas por misturar os gêneros de romance e suspense, cercada pelas banalidades do mundo atual.

Você consegue trazer dinâmicas ricas entre seus personagens, sempre muito bem complementada pela narração intimista de Joe, e propõe reflexões extremamente válidas sobre onde nós, como a primeira geração a se relacionar desse jeito, traçamos a linha do absurdo. Temo que a segunda temporada não consiga lidar muito bem com a posição em que Joe se encontra, neste final. A saída de Paco também trará novas dificuldades para manter a empatia do público. Mas, quem sabe, pode-se aprofundar ainda mais este retrato contemporâneo, e mostrar que não é só através de Black MIrror que podemos nos sentir atormentados pela sociedade em que vivemos.

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