Com a chegada de Star Trek: Sem Fronteiras nos cinemas americanos no último dia 22 de julho, uma série de veículos da indústria do entretenimento vieram com matérias bem similares. Títulos como esses: “Em meio à saturação de Star Wars, para onde Star Trek pode ir em seguida?” (Graeme McMilan, The Hollywood Reporter); e “Para onde (e quão bravamente) a série Star Trek deve ir agora?” (Owen Gleiberman, Variety). A obsessão em traçar o futuro de uma franquia quando um novo elemento dela está aparecendo no mercado não é nova, mas com Star Trek a análise me cheirou a abutres rodeando um suposto cadáver cujo pulso ainda não tinha parado de bater.
Sem Fronteiras chegou aos cinemas brasileiros só nesta quinta-feira (01), um mês e meio depois da estreia americana, e de fato a performance financeira do filme decepcionou. Acumulando US$244 milhões ao redor do mundo por enquanto, com alguns mercados-chave ainda ausentes da conta, o filme deve fechar, com alguma sorte, acima dos US$300 milhões, e com uma recepção crítica largamente favorável ajudando a reputação da franquia. Levando em conta que os outros filmes da série recomeçada por J.J. Abrams em 2009 gravitaram em torno da figura dos US$400 a US$450 milhões, no entanto, ainda é uma queda a ser considerada. Não é um fracasso, mas é um chamado ao realismo para a Paramount, que detém os direitos da série.
Star Trek: Sem Fronteiras, no entanto, faz parte de uma franquia que não se aplica às regras comuns da indústria. Uma franquia de 50 anos de idade que carrega uma importância cultural que praticamente garante que, mesmo que adormeça por alguns anos ou se mostre uma coadjuvante no panteão contemporâneo da ficção científica, Star Trek não vai parar no bico daqueles abutres que citei acima tão cedo. Desde 1979, quando Jornada nas Estrelas: O Filme ressuscitou uma série que havia terminado uma década antes, o maior tempo que já passamos sem um filme ou série de TV de Star Trek foi 4 anos – entre 2005, quando Star Trek: Enterprise acabou, e o reboot de 2009 comandado por Abrams.
Manter uma corrente praticamente ininterrupta de entretenimento por tanto tempo, passando por mudanças culturais tremendas que certamente derrubaram e deixaram datados muitos ícones da mesma época de Star Trek, é um feito e tanto. Por isso, o Observatório do Cinema não quer se juntar ao coletivo de abutres rondando Star Trek por conta da explosão de Star Wars – ao invés disso, nos cabe perguntar: e os próximos 50 anos? Abaixo, você vai ver o que descobrimos em entrevistas com fãs de ambas as arcanas franquias da ficção científica, e talvez no final entender um pouquinho do que é que as faz tão especiais.
Altamente ilógico
“Gosto mais da série clássica. Reconheço suas falhas técnicas, inocência e baixo orçamento, mas foi minha série de infância e abriu minha mente para buscar conhecimentos”. Essa é a resposta que você recebe da paulistana Ana Menezes quando a pede para fazer uma escolha quase impossível entre todos os títulos de sua franquia preferida, Star Trek. Do alto da experiência de quem assistiu a Jornada nas Estrelas original nas transmissões da TV Bandeirantes, conversar com a Ana não só é ter acesso a uma enciclopédia de conhecimento factual sobre a série como também um entendimento profundo do que ela representou e ainda representa.
“Acho que os filmes de ficção científica, cinema e TV, antes de Star Trek, eram limitados a monstros gigantes e cientistas loucos, e quando surgia alguma produção mais séria era dirigida para um público mais ‘intelectual’, por falta de melhor palavra”, reflete a Ana. “Era gente já familiarizada com ciência e conceitos de física, que não precisava ser cativada pelas possibilidades do futuro porque já compartilhava das teorias. De repente, surge na TV, direto para o público americano encantado com maravilhas como aspiradores de pó e torradeiras elétricas, um sujeito que bem podia ser o vizinho ao lado comandando uma nave espacial, com uma tripulação multirracial, problemas bem similares aos da vida real e um mistério espacial para resolver a cada episódio”.
A identificação com a simplicidade enganadora dessa premissa é talvez o que guarda mais apelo em Star Trek até hoje. Em uma incursão pessoal, quando este que vos fala assistiu Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, durante a adolescência, foram os personagens da tripulação, suas relações e anseios tremendamente identificáveis, que me mantiveram assistindo mesmo com os efeitos ultrapassados e os plots, às vezes, claramente reprimidos. A Ana lembra que o Leonard Nimoy chamou esse apelo de “o gênio fora da garrafa” – o impossível puxado para mais perto do espectador, e o cuidadoso desvendar da humanidade do futuro mostrado na tela. No evangelho segundo Gene Roddenberry, os tempos são outros, mas nós somos os mesmos.
Essa visão se reflete na forma como Ana, que quando eu a conheci usava o apelido Bones (em referência ao Dr. McCoy da série original), encara a expectativa para a nova série de TV da franquia, conduzida por Bryan Fuller (Hannibal) em parceria com a CBS. “Eu não guardo expectativas quanto à nova série. Creio que se você consegue juntar um elenco simpático, roteiro acessível ao grande público e um orçamento milionário, é bem provável que obterá um bom show. Acrescente uma base leal de fãs e uma campanha esmagadora de marketing e… booom, segunda temporada garantida”, refletiu, com clareza de visão.
De fato, é difícil imaginar um mundo em que um produto de Star Trek para o mercado ultra popular de TV, atrelado ao sucesso ainda inegável dos filmes da nova série, não seja um triunfo de audiência. Nas mãos de um showrunner competente como Bryan Fuller, então, Star Trek: Discovery promete ser uma adição digna à história de Star Trek e manter a chama da série viva mesmo que o já prometido quarto filme da franquia cinematográfica não vingue. Nesse sentido, a chegada de Fuller pode ser a resposta para um dos apelos que a Ana me fez durante a entrevista.
Quando a perguntei sobre a controvérsia envolvendo a homossexualidade de Sulu (John Cho) no novo filme da franquia, e sobre o ambiente criativo que ainda é notavelmente retrógado socialmente da ficção científica, minha entrevistada refletiu: “Se por retrógado socialmente você quer dizer que a ficção científica dá ênfase a uma sociedade ultrapassada, acho que carecemos de escritores audazes que estabeleçam novos parâmetros, criem mais ao invés de retomar as leis da robótica de Asimov toda vez que um robô aparece num filme”. Gene Roddenberry, o homem que colocou o primeiro beijo inter-racial na TV americana, certamente concordaria. Afinal, sem “audaciosamente ir onde nenhum homem jamais esteve”, o que é Star Trek?
Eu tenho um mau pressentimento…
E aqui está a diferença fundamental entre Star Trek e Star Wars, também. A aventura criada por George Lucas em 1977 nunca foi sobre “audaciosamente ir” a lugar nenhum. Star Wars, desde seus primórdios, já era um resgate de um sentimento antigo, de uma aventura de outras décadas. Na minha entrevista com a Ana, ela mencionou que o público original de Star Trek vivia “sob a égide do poderio atômico em plena Guerra do Vietnã”. Quando eu conversei com o Rodrigo Gianesi, 26 anos, de Campinas (SP), foi que as semelhanças e as conexões entre as duas franquias começaram a se encaixar na minha cabeça.
“O primeiro Star Wars em 1977 já foi um resgate de outros tempos, considerando a fórmula da narrativa, que tem a mesma estrutura de histórias contadas desde sempre”, comentou o Rodrigo, citando a famosa Jornada do Herói de Joseph Campbell. “Na verdade, Star Wars não é uma história de ficção científica, mas de fantasia, de heróis, e esse tipo de história é atemporal e muito atraente para o público. Um dos motivos do enorme sucesso que o filme fez em 1977 foi a situação que viviam os Estados Unidos, com inflação, guerras, escândalos políticos, protestos e etc”.
Entender o apelo de um Star Wars revivido após o sucesso de O Despertar da Força, talvez proporcional ao sucesso do filme original de 1977, é entender que nós também passamos por um período em que vivemos “sob a égide” de uma série de crises, no mundo inteiro. “Tem muitas mensagens em Star Wars que eu acho que são importantes. A primeira trilogia fala sobre lutar contra um sistema injusto, fazer escolhas que determinam nosso destino, se ater aos nossos princípios morais. A segunda trilogia, com todas as falhas que ela tem, fala bem sobre poder, ganância e manipulação. São coisas que mesmo sendo de ‘uma galáxia muito, muito distante’, são parte do nosso universo também”, define o Rodrigo.
Num clima bem diferente daquele famoso “me recuso a ter expectativas” dos fãs de Star Trek, os admiradores de Star Wars passam por um momento em que é impossível não ver com bons olhos o futuro. Série animada (Star Wars Rebels) vencendo semana após semana na audiência, sequências principais (Episódio VIII em 2017 e Episódio IX em 2019) garantidas, múltiplos spin-offs (Rogue One, Han Solo) planejados, produtos secundários da franquia recebendo mais atenção do que nunca da mídia… Difícil ver o lado ruim dessa história. Fascinante, no entanto, é pensar em como a Disney/Lucasfilm vai explorar novos horizontes, gêneros e mensagens com Star Wars.
“Eu acho muito válido trabalhar com outras propostas, porque o universo Star Wars é imenso. Se formos pegar o universo expandido, que embora não seja mais canônico, ainda deve servir como inspiração em algumas coisas, existem histórias desde mais de 30 mil anos antes da Batalha de Yavin, do Episódio IV”, me contou o Rodrigo. “Ou seja, existem milhões de histórias que podem e devem ser contadas de maneiras diferentes, é um universo muito grande para se restringir à apenas um gênero”. A pergunta é de que forma Star Wars adapta aquele seu clima otimista e sua mensagem de resistência e idealismo em um filme que não é uma reedição dos seriados do Flash Gordon.
Por falar nisso, contem o Rodrigo na legião de fãs que querem ver um filme sobre o tempo que Obi-Wan Kenobi passou no planeta desértico de Tatooine, observando Luke Skywalker sem que o garoto percebesse. Rodrigo apontou para o livro Kenobi, de John Jackson Miller, descrito como “um faroeste”, que conta exatamente essa história. “O filme não precisaria necessariamente seguir a história do livro, que também não é mais parte do cânone da franquia, mas acho que o personagem deve ser mais explorado já que ele é a principal ligação das duas trilogias”, comentou. “Na minha opinião, o Obi-Wan interpretado por Ewan McGregor foi um dos pontos altos das prequels, e ele já disse que aceitaria reinterpretar o papel”.
A fronteira final
Ouvir essas duas pessoas bem diferentes falar sobre as sagas que amam é uma experiência fascinante, porque a partir da fala deles é possível entender o elemento em comum que eu sempre intuí que precisava existir entre as duas marcas mais famosas do mundo da ficção científica. Não é a toa que ambas tem “Star” no nome. Seja lembrando as narrativas de ontem ou buscando nos personagens o elemento comum de humanidade, ambas nos transportam para uma exploração espacial que parece ao mesmo tempo encantadoramente inédita e confortavelmente familiar.
Ficção científica sempre me fascinou porque é um “Cavalo de Troia”, como o ator Keanu Reeves disse uma vez em entrevista a antiga Revista SET – e descobrir o que tem dentro do Cavalo de Troia de Star Wars e Star Trek é fundamental para entender o que as faz tão longevas e, ao mesmo tempo, tão atuais na nossa cultura pop. “Em algum lugar, alguém me disse que se não houvesse um Star Trek jamais haveria um Star Wars, exatamente porque Star Trek inovou a forma como a audiência aceita histórias espaciais. Eu assisti Star Wars no cinema. Não vi essa rivalidade porque pouquíssimas pessoas que eu conhecia sabiam o que era Star Trek. De fato, foi só depois do filme de Star Trek no cinema que essa história de rivalidade apareceu”, me contou a Ana.
“Impossível negar a campanha de marketing sobre cada produto. Hoje é Star Wars, amanhã pode ser Star Trek. Também não se pode negar a competência da produção de Star Wars em 1977, o filme revolucionou os efeitos especiais e levou um público novo ao cinema de ficção científica. Quanto a Star Trek, creio que a franquia tem seu lugar garantido. Graças ao fã-clube incondicional e a fórmula de novela espacial. Se será na TV ou no cinema, só a bilheteria dirá. Eu estarei lá na estreia, comprarei o Blu Ray, assistirei na TV quando for exibido, porque me faz feliz. É ilógico, porém verdade”, conclui ela.
Algumas coisas são certas: a missão de cinco anos que já durou 50 do Capitão Kirk está longe de acabar, e a galáxia muito, muito distante nunca pareceu tão perto.