No último dia 8 de novembro, os norte-americanos se surpreenderam consigo mesmos. A vitória de Donald Trump expôs tantas falhas e apontou para tantos “culpados” que fica difícil manter o olho em todos: a mídia, que não só deu a Trump acesso ilimitado a horas e horas de cobertura eleitoral (muito mais do que o normal), mas também deixou de corrigir as mentiras que ele dizia durante a campanha; o sistema eleitoral americano, que não leva em consideração o voto popular geral (no qual Hillary Clinton venceu), mas sim os votos de cada estado, seu tamanho, e a quantos ele equivalem no cenário nacional. Esse é só o começo da lista.
Durante a campanha, o candidato republicano destilou ódio a múltiplos grupos minoritários: muçulmanos, a esmagadora maioria deles refugiados não radicalizados, que considerou uma ameaça à segurança nacional; imigrantes latinos, a quem chamou de “estupradores e traficantes” no primeiro dia de sua campanha; a comunidade LGBT, que se sente justificadamente ameaçada ao ver Mike Pence, um homem que já defendeu terapia de conversão no estilo “cura gay”, como vice-presidente; negros, ao negar que há um problema de brutalidade policial nos EUA; mulheres, ao aparecer fazendo comentários misóginos e em seguida ser acusado por dezenas de denunciadoras de abuso.
E ainda assim, mais de 60 milhões de americanos votaram por ele. Há de se pensar aqui nos grupos de pessoas que se sentiram mais representados por Donald Trump do que jamais haviam se sentido antes. Não só grupos extremistas como os supremacistas brancos da Ku Klux Klan, mas o americano médio que se sentiu desconectado da política de seu paós e viu na grosseria de Trump uma forma de protesto ou uma expressão de sentimentos aplacados pela época de justiça social como trending topic que vivemos. O Brasil não está tão longe dessa mesma bifurcação, então vale a pena observar e aprender.
Nós do Observatório do Cinema entendemos que as formas de arte que cobrimos aqui têm a capacidade especial de refletir e significar o mundo em que se localizam. Cinema e TV são espelho e martelo, mostrando e moldando a realidade. Portanto, aqui vai uma análise de como o cinema e a TV podem nos ajudar a entender a eleição de Donald Trump.
Politics as usual
Poucos dias depois da eleição de Trump, um roteirista de Parks & Recreation assinou uma carta para o Yahoo! escrita na voz de sua protagonista, Leslie Knope (Amy Poehler), uma representante governamental que passou sete temporadas tentando idealisticamente fazer da cidade de Pawnee um lugar melhor. “Nós vamos encontrar uma maneira de lutar, e fazer o bem nesse mundo enfurecedor que constantemente quer se aproximar mais e mais do mal. Nós vamos ser gentis uns com os outros, e apoiar as ideias uns dos outros, e fazer literalmente tudo, menos aceitar que este é o nosso destino”, escreve Knope.
Conversei com a Sâmela Silva, uma fã de Parks & Recreation de São Pedro da Aldeia (RJ), e ela traçou um paralelo interessante entre Knope, Hillary Clinton e utra política famosa da TV: Selina Meyer, a protagonista de Veep. ”Apesar de suas diferenças, todas elas sofrem o estigma de ‘só mais uma política’, que é justificável ao descrever Selina, e injusto para Leslie. Tal insatisfação pode levar candidatos desqualificados a serem eleitos, como o Vereador Jamm, ‘vilão’ de Parks, que não se importa com suas responsabilidades”, me disse a Sâmela.
“O que Hillary enfrentou durante a eleição não foi tão diferente das situações de Meyer e Knope, e sua derrota se deu em parte pela imagem de política que faz acordos por trás dos panos, que não pode ser mudada a tempo. O povo norte-americano queria alguém diferente, fora de Washington, e Clinton não teve chance contra Trump, mesmo que ele seja desqualificado para o cargo”, adicionou ainda. Em perspectiva, é claro, dá para perceber tudo isso – mas o estigma de “politics as usual” (“política como sempre”) como algo negativo é mais novo do que parece. Nasce de uma insatisfação idealista e faz a volta completa, como opiniões radicais costumam fazer, para o puro protesto ignorante.
Para exemplificar isso, a Sâmela cita ainda outra série, Madam Secretary. Procedural da CBS que lida com as idas e vindas de uma “política por profissão”, Elizabeth McCord (Téa Leoni), Madam Secretary é em muitos sentidos um bom exemplo do que uma presidência de Hillary Clinton seria – e um bom espelho do que a administração Obama também foi. “No cenário americano atualmente é mais fácil odiar refugiados da Síria do que pensar nos motivos pelos quais eles precisaram fugir de seu país. É mais fácil temer e destilar ódio do que ter uma conversa madura sobre assuntos complicados, e isso cria insensibilidade e exalta o egoísmo, tanto na política quanto para os cidadãos”, comentou, certeiramente, a Sâmela.
Ambição é poder
Outros títulos da grade de programação americana analisam a forma como indivíduos se conectam com o poder de forma diferente. Game of Thrones, para todos os efeitos, é uma série sobre política, e especialmente sobre opressão – em seu épico escopo, George R.R. Martin e seus adaptadores D.B. Weiss e David Benioff criaram uma narrativa que analisa a forma como líderes exercitam seu poder, seja na salvação populista de Daenerys, na administração acomodada e preguiçosa de Robert Baratheon, na astuta e raivosa ascensão de Cersei.
A oposição entre o governo de Daenerys, que libera seus súditos da opressão sem se preocupar com o que colocar no lugar, e o governo de quem quer que esteja no poder em Porto Real, fazendo gestos vazios em direção a essa população oprimida (como faz Margeary) ou abertamente os desprezando (como faz Cersei), é clara e exemplarmente cínica. Vale apontar também para o empoderamento desse povo pouco ouvido que acontece quando o Alto Pardal chega com seus próprios discursos vazios, pregando uma “nova moralidade” que, de moral, não tem nada – efetivamente, o Pardal pede que o povo troque uma opressão pela outra, e o povo aceita. Não é um paralelo interessante para se fazer com Trump?
“Constante fome por poder é o que manda no mundo, e existem várias Selinas Meyer’s andando pelos corredores da Casa Branca (ou tentando chegar lá). O que é mais proeminente neste caso é a falta de empatia pelo próximo, o sentimento de ‘nós contra eles’. Exemplo claro disso se encontra em outra sátira política, o filme In The Loop: Grã-Bretanha e Estados Unidos resolvem entrar em guerra no Oriente Médio porque os benefícios dessa guerra são vistos como mais importantes do que as milhares de vidas que serão perdidas em batalha. A opressão de vários para a felicidade de um não é um conceito novo, mas é tão óbvio nessas eleições que é difícil ignorar”, me lembrou a Sâmela.
A trama citada, que lembra claramente o final da quarta temporada de House of Cards, expõe um mundo político que dá medo, e que faz começar a entender o porquê o público americano quis escolher alguém de fora do “estabelecimento político” para governa-los. No entanto, falta profundidade nesse entendimento: conforme os episódios foram se passando, o protagonista de House of Cards, Frank Underwood (Kevin Spacey) foi se tornando cada vez mais monstruoso – navegando um mundo de pessoas que, na medida de certa ambição, ainda buscam fazer bem ao público, House of Cards mostra o estrago que uma sensibilidade completamente orientada para benefício próprio pode fazer. Underwood não é mau porque é um político habilidoso – ele é mau porque não é um servidor público, ocupando um lugar que deveria ser de um. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Há um outro fator para ser considerado, no entanto, nessas eleições: machismo. A perspectiva de uma mulher presidente não agradava a muitos americanos, e isso não deve ser dispensado como um fator menor. Um repórter da Fox News, emissora americana de notícias mais assistida do país, chegou a perguntar sobre Clinton, de 68 anos: “E se ela estiver em um daqueles dias?”. A Sâmela me aponta que Veep, Parks & Recreation e Madam Secretary mostram mulheres em posições de poder tentando lidar com problemas com sua percepção pública e a insubordinação de homens que estão, literalmente, subordinados a elas.
“Todas essas mulheres precisaram lutar contra o machismo e a minoria de mulheres no governo, e tiveram que mostrar seu valor com muito mais esforço do que um homem teria; esta eleição só vem mostrar que a valorização do sexo feminino ainda precisa ser tópico de conversa, mais relevante do que nunca”, comentou minha entrevistada. Talvez seja difícil conceber que, em 2016, isso ainda seja um problema, mas o processo eleitoral americano nos mostrou que é, assim como o racismo sistêmico e explícito, e a homofobia, e a transfobia.
É curioso passar por um processo assim longe de nós que expõe de maneira tão clara o que vivemos aqui mesmo, no Brasil, recentemente, quando veio à superfície uma misoginia que foi um fator importante para a deposição de nossa própria presidenta, Dilma Roussef. Alguém se lembra do “tchau, querida”? “Selina sempre evitou dizer que era mulher em público, com medo do escrutínio; em um episódio, Meyer fala: ‘Não posso me identificar como uma mulher. As pessoas não podem saber disso. Homens odeiam isso. E mulheres que odeiam mulheres odeiam isso, o que, creio eu, seja a maioria das mulheres’. Clinton usou seu gênero para incitar mudança, tendo a proposta de ‘primeira mulher presidente’ como carro-chefe de sua campanha. E, de fato, muita gente odeia isso, como Veep previra”, comenta a Sâmela.
O resto é história
Não é só a ficção que pode nos dizer o que aconteceu no dia 8 de novembro, no entanto – ou melhor, a ficção baseada em fatos reais também pode. Basta olhar para The Americans, série que a FX exibe desde 2013 sobre um casal de espiões comunistas escondidos dentro dos EUA dos anos 80, durante a presidência de Ronald Reagan, que no final da 3ª temporada aparece caracterizando a União Soviética como “o centro de toda a maldade do mundo contemporâneo”. A polarização mundial da Guerra Fria permite que The Americans explore radicalizações idealistas de todos os tipos, e como no caminho delas perdemos nossa humanidade.
A época de Reagan, a caça ao comunismo, todas essas memórias estão mais vivas do que nunca na cabeça dos americanos no momento. The Americans se torna urgente tanto por sua reflexão dessa época quanto por seu matiz temático que ajuda a entender a forma como o país deles (e, cada vez mais, vale lembrar novamente, o nosso) se tornou tão dividido. Fazer oposição àqueles que não só acreditam em algo diferente do que você, como também e principalmente querem tirar seus direitos como cidadão, é mais do que justo e necessário. Se entregar a uma causa é importante – se perder para ela é perigoso. Pode ser um sacrifício necessário, mas ainda é um sacrifício, e The Americans ajuda a entender e avaliar isso.
Para analisar outra época da política americana que faz mais trágico sentido agora do que nunca, vale olhar também para Frost/Nixon, o retrato do bicho-papão da política progressista democrata, Richard Nixon. Não só por sua corrupção, mas por sua noção de que merecia essa corrupção por estar no poder (“estou dizendo que se o presidente faz, não é ilegal!”), Nixon é um paralelo perfeito para um Donald Trump que nasceu e cresceu em privilégio, mas nunca realmente experimentou poder político. Não se surpreenda se, daqui há 20 anos, Trump seja visto como o novo Nixon – seu apelo com os eleitores é basicamente o mesmo.
Por fim, a história mais recente também traz lições. Em Game Change, Julianne Moore interpreta uma Sarah Palin que, ao ser escolhida para ser vice-presidente do candidato republicano John McCain (Ed Harris) em 2008, afundou a campanha do veterano de guerra. Palin não disse metade das coisas preconceituosas, retrógradas e terríveis que Donald Trump disse, mas os votantes a rejeitaram mesmo assim. Já em Recount, filme para a TV estrelado por Kevin Spacey, as falhas do colégio eleitoral americano são expostas com a história da eleição de 2000, que Al Gore perdeu mesmo tendo mais votos totais que George W. Bush.
Cinismo é a cura
A única série que nos apresenta um antídoto para tudo isso que descrevemos aí em cima, no entanto, é a mais improvável: BrainDead, uma sátira política misturada com terror-B criada pelo mesmo casal responsável por The Good Wife. Se Robert e Michelle King já mostravam em sua série anterior que o cinismo está longe de ser um defeito, e é muito mais um sinal de amadurecimento, em BrainDead a mensagem fica ainda mais clara: quando alienígenas invadem a Terra e entram em cérebros de políticos em Washington, eles os transformam em seres ultra-partidários e idealistas ao extremo, incapazes de fazer concessões e negociações.
BrainDead quer nos dizer que, em um mundo de diversidade absurda, é impossível governar com só metade de um país ao seu lado. Mostra que acordos complicados, quase nunca perfeitos, ajudam-nos a caminhar em direção ao progresso – os heróis de BrainDead são republicanos e democratas essencialmente pragmáticos, que trabalham juntos em uma direção mesmo que cada um puxe o “volante” desse carro para um lado. Não é fácil. Há certos princípios e questões nas quais ninguém está disposto a ceder, e isso não é só esperado, como necessário.
O que Robert & Michelle King ilustraram, no entanto, é que os adultos entre nós deveriam ser capazes de buscar o melhor para seu país mesmo quando esse melhor é uma candidata com a qual eles têm discordâncias e reservas justificadas. Hillary Clinton seria uma presidente de negociação, acordo e compromissos morais que por vezes não seriam confortáveis, mas Trump será um presidente de rigidez direitista e possíveis retrocessos sociais e econômicos – um presidente com quem será impossível, ou muito difícil, negociar.
O que faltou ao povo americano, e pode faltar ao brasileiro lá em 2018, foi e será a vontade de se engajar no jogo político pelo que ele tem de mais sujo, complicado, imoral e, sim, eventualmente satisfatório. Faltou aceitar a política como humana, e não ideal – faltou, por fim, cinismo. E faltou BrainDead, que foi cancelada após a primeira temporada. Em tempos em que a arte vê e reflete tanto do mundo político, não dá para acreditar que é só coincidência.