Bem-vindos de volta ao Olhar Geek, e o assunto dessa semana não poderia ser outro: cinema de horror. Com a estreia do terceiro filme da franquia Invocação do Mal (não se esqueçam de Annabelle, que é spin-off da série) nos cinemas nesta quinta (9), nenhum outro tema está mais em alta do que os filmes de assombração, possessão, assassinos e monstros sortidos que vem divertido e assustando audiências pelo mundo praticamente desde que o cinema foi inventado.
Talvez o primeiro grande clássico do gênero, O Gabinete do Dr. Caligari foi lançado em 1918, poucos mais de uma década depois do começo da produção cinematográfica humana. Desde então, o cinema de terror passou por uma rica história que incluiu movimentos das mais diferentes orientações e estilos dominando audiências ao redor do mundo, dos monstros da Universal aos filmes de Dario Argento e George A. Romero, até os infames found footage desencadeados por A Bruxa de Blair. Mas não estamos aqui para falar de antiguidades, e sim do estado do gênero hoje em dia – e é claro que James Wan, o diretor de Invocação do Mal, é grande parte disso.
O malaio Wan, o homem que nos revelou Jigsaw no clássico Jogos Mortais (2004) e seguiu para dirigir o subestimado Gritos Mortais (2007) e criar outras franquias interessantes do cinema de horror como Sobrenatural (2010, 2013, 2015) e a própria Invocação do Mal, é um dos nomes mais óbvios da nova geração do cinema de terror, e impossível negar que é também um habilidoso manipulador de estilos e atmosferas para assustar o espectador e criar uma história que não se renda aos impulsos mais baratos do gênero.
Seu trabalho é simbólico desse novo movimento no gênero, um que se apoia em tradições e métodos testados anteriormente por clássicos (vale reparar em como A Entidade, de 2012, usa da música e das sombras para criar tensão), mas também se segura firme à modernidade, refletindo questões muito atuais e se moldando para uma audiência sofisticada mesmo no nível mais comercial dos cinemas multiplexes. O público não quer mais sustos fáceis – e o que Wan entrega é um medo elaborado e trabalhado em todos os aspectos da produção do filme, um mal que se esconde nos detalhes e, por isso, é ainda mais assustador.
Para celebrar esse cinema de horror renovado após uma década pouco marcante (a de 2000, que largamente só viu imitações baratas de Pânico e outros filmes de terror para adolescentes chegando aos cinemas), separamos cinco filmes essenciais além da filmografia de Wan, e mostramos o que cada um deles tem a ensinar para os que vierem depois. Vale notar como todos esses filmes são feitos – atuados, dirigidos e escritos – por jovens artistas de menos de 40 anos. Com vocês, o cânone do novo cinema de terror:
Lição #1: Não tenha medo de se divertir com o gênero
Essa é uma lição que talvez os cineastas deveriam ter aprendido com Pânico, o original de 1996, mas o estilo cheio de sarcasmo do roteiro de Kevin Williamson e a indelével marca de Wes Craven na direção faziam o filme estrelado por Neve Campbell parecer um fenômeno de certa forma inimitável. Você é o Próximo (2011) aportou nos cinemas direto da dupla de diretor/roteirista de Adam Wingard (33) e Simon Barrett (37), que mais tarde fariam o elogiado The Guest (2014), outro filme recomendado da safra de suspenses atuais, e provou que não era bem assim.
Não que Você é o Próximo seja uma emulação do clima ou da metalinguagem de Pânico, mesmo porque é bem mais sutil nas formas como brinca com as convenções do gênero e as subverte em determinados momentos de humor negro. É um filme violento e sangrento, uma prova de resistência, ainda que talvez não para o espectador, ao menos para seus personagens. Dono de uma reviravolta genuinamente esperta, e de atuações acertadas que funcionam ainda melhor quando interagindo umas com as outras, Você é o Próximo é um thriller de invasão a domicílio que faz jornada dupla como uma dramédia de família especialmente perturbada e disfuncional.
Na trama, a australiana Sharni Vinson, 32 anos (que não virou uma estrela de primeira grandeza depois desse filme, mas deveria), interpreta a inocente namorada de um dos filhos de uma família riquíssima. Quando a família se reúne para um raro jantar após os pais se mudarem para uma nova e afastada casa, incluindo todos os irmãos e agregados, um grupo misterioso de assassinos vestindo máscaras de animais começa a ataca-los um por um. Eles só não contavam, é claro, que a personagem de Vinson fosse uma bad-ass na melhor tradição Tenente Ripley e Sarah Connor.
Mesmo durante o ataque dos assassinos, no entanto (e especialmente antes do começo da carnificina), Você é o Próximo é um filme dedicado a fazer graça das disfunções dessa família, das rivalidades entre irmãos, do comportamento fragilizado e vitimista da matriarca, da “coragem masculina” do pai, da velada desaprovação que todos mostram em relação aos namorados e namoradas escolhidos pelos irmãos e filhos. Dono de diálogos ácidos, mas um olhar cinematográfico ainda mais, Você é o Próximo é um filme de terror que vira as expectativas de cabeça para baixo na melhor forma possível, sem nunca enganar o espectador.
Em um gênero cheio de tantas convenções e clichês, a melhor estratégia para evita-los talvez seja encará-los de frente e apresenta-los para o espectador com uma piscadela e um sorriso cínico no rosto.
Lição #2: Brinque com a percepção do espectador
Cinema em geral talvez tenha muito a ver com a forma como os cineastas e os outros artistas envolvidos na produção de um filme distorcem e brincam com a nossa percepção, mas o cinema de horror depende muito mais disso que qualquer outro. No longa-metragem de estreia do talentoso diretor Mike Flanagan, 38 anos, uma das cenas mais marcantes é quando uma das protagonistas, feita por Karen Gillan (28), pega uma fruta nas mãos para morder e acaba descobrindo que fincou os dentes em outro objeto bem mais mortífero.
A descrição não é spoiler principalmente porque a cena se encontra no trailer do filme, mas também porque O Espelho (2013) é muito mais que esse momento de brincadeira psicológica. O filme é estruturado em uma narrativa que cobre dois momentos diferentes da vida dos protagonistas (infância e vida adulta) em que eles confrontam um espelho supostamente amaldiçoado pendurado na parede da casa em que viveram com a família antes de uma tragédia que colocou o irmão da personagem de Gillan na cadeia. Em busca de vingança e provas das manifestações sobrenaturais ao redor do espelho, Gillan e o irmão, feito por Brenton Thwaites (26) conduzem um experimento que começa a dar terrivelmente errado.
Durante seus 104 minutos de metragem, O Espelho mistura esses dois momentos temporais e os entrecorta de formas que cada vez mais induzem à tensão e à confusão, misturando a história dos irmãos entre passado e presente de uma maneira que é mais perturbadora do que as breves miragens de assombrações e monstros que temos durante o filme. De muitas formas, o filme de Flanagan é um longo exercício de manipulação do espectador, e o diretor tira de letra a estilização de cenas que não saem fácil da memória.
O Espelho tem uma lição valiosa para ensinar não só no sentido de dizer que a sugestão provoca mais do que o explícito no cinema de horror. O filme de Flanagan demonstra também que conceitos e narrativas complexas não estão acima do espectador do gênero, e podem funcionar em um nível instintivo até mais do que em um nível consciente. O Espelho não é complicado, ou especialmente perturbador, mas distorce uma história simples, carregada por interpretações sólidas , para se tornar um pedaço espetacular de entretenimento de horror.
O diretor Flanagan voltou a brincar com esse tipo de cinema de percepção em Hush: A Morte Ouve (2016), disponível no Netflix.
Lição #3: Medos reais são mais assustadores que fantasmas
Qual temporada de American Horror Story é a mais assustadora para você? Certamente não é a das bruxas (Coven), a das aberrações de circo (Freak Show) ou a do hotel mal-assombrado (Hotel). Não, a disputa fica entre Murder House (1ª temporada) e Asylum (2ª), e nós apostamos que no final das contas quem ganha o jogo é Asylum, simplesmente porque nela vivem medos que são metáforas para aversões muito reais – para as mulheres, o medo da violência dos homens; o medo da perversão sexual; o medo do preconceito e do que pode vir dele; o medo de Deus, do pecado, do inferno.
Medos reais são mais assustadores que fantasmas, ou melhor, fantasmas são mais assustadores quando eles nos lembram de medos reais. Freddy Krueger sobrevive a todos esses anos de franquia porque brinca com o nosso medo de pesadelos, nosso pânico de perder o controle da nossa consciência enquanto dormimos. E em Corrente do Mal (2014), a maldição que segue a protagonista feita por Maika Monroe, 23 anos, em passo lento pelas ruas e para onde quer que ela vá, é uma representação do nosso medo de envelhecer, e de todos os medos que vem juntos a ele.
Talvez a obra-prima desse novo cinema de terror do qual estamos falando, Corrente do Mal usa de uma fotografia geniosa e de uma trilha-sonora recheada de sintetizadores que nos deixam desconfortáveis quanto à época em que o filme se passa para provocar a constante tensão em que nos deixa. O espectador não deve se surpreender se, lá pelo meio do filme, já estiver examinando nervosamente cada frame do filme em busca da assombração do título, uma “maldição” transmitida sexualmente que segue as pessoas a passo lento e deve ser “passada adiante” antes que as alcance.
Corrente do Mal poderia ser uma metáfora boba para as DSTs, ou a impureza do sexo, mas escolhe ser um conto de amadurecimento que cutuca medos muito comuns da fase pós-adolescente – medo do abandono, medo da violência, medo da sexualidade, medo do envelhecimento. Como um Curtindo a Vida Adoidado sem números musicais ou mensagens inspiradoras, Corrente do Mal é de certa forma desesperador porque nos quer dizer que somos incapazes de realmente nos livrarmos dessa maldição, e desses medos que ela representa. Não podemos parar o tempo, nem podemos mudar quem somos – e o pânico sufocante dessa condição humana é mais forte do que o medo de qualquer entidade sobrenatural.
Outro exemplo muito claro disso é Boa Noite, Mamãe (2014), que aborda medos de abandono maternal de forma delicada e absurdamente bem filmada, com toques de horror corporal ao melhor estilo David Cronenberg. É um filme sobre a negligência de uma mãe sobre seus filhos, sobre a forma como muitas vezes vemos apenas a nossa dor e nossas necessidades, e não as do outro. Pegar um desses medos existenciais fundamentais e explorá-los metaforicamente na forma de um mistério sobrenatural é algo que o filme de terror sempre teve a responsabilidade de fazer – e é maravilhoso ver cineastas assumindo mais uma vez essa responsabilidade.
Lição #4: A jornada emocional dos personagens importa
O Bebê de Rosemary (1968) é tão lembrado pelas provações emocionais que sua protagonista passa durante o filme quanto é lembrado por ser a história de uma mãe que acha que seu filho pode ser o Anticristo. O Exorcista (1973) é tanto o filme sobre uma garota possuída quanto é um filme sobre a reafirmação ou teste de fé de um padre meio cínico, e de uma família abalada. E O Babadook (2014) é tanto a luta de uma mãe contra um monstro saído do livro infantil de seu filho quanto uma história sobre uma família atravessando um processo de luto.
Em muitos sentidos, o filme de Jennifer Kent, que dirigiu e escreveu, se encaixa também na lição #3, uma vez que reflete processos de luto e o medo de não ser capaz de amar seu próprio filho – seja por depressão pós-parto ou por qualquer trauma relacionado a ele. O que Kent mais trabalha, no entanto, é em conectar a jornada de horror do filme, que tira alguns sustos e efeitos genuínos da criatura caricata que é o Babadook, ao processo pessoal pelo qual a mãe (Essie Davis) passa com o filho (Noah Wiseman) anos depois da morte do pai, que pereceu em um acidente no dia do parti.
É uma história, como muitas da nossa lista, sobre aprender a conviver com um monstro que, por ser uma representação metafórica de um medo existencial, sempre vai existir no fundo da tela (ou da nossa mente). É também uma história inteiramente guiada pelas interpretações, e isso é importante, porque Kent entrega muito de seu filme nas mãos de Davis e Wiseman, e os dois a recompensam com performances espetaculares.
Muito além do Babadook, com o seu visual ridículo e estranhamente incômodo ao mesmo tempo, como que saído de um recorte tosco de um monstro de filme antigo (do expressionismo alemão, como O Gabinete do Dr. Caligari, que citamos no comecinho do artigo), o que fica com o espectador no final do filme de Kent é a coragem de ferro da personagem de Davis, seu lento caminho em direção à loucura e de volta a uma espécie quebrada e bela de amor pelo filho, intensamente vivido pelo jovem Wiseman. Há algo de visceralmente emocional na jornada de horror de O Babadook, e é isso que o torna inesquecível.
Lição #5: Simplesmente faça um ótimo filme
A Bruxa (2015) não se encaixa em todos os requisitos ou “lições” do nosso artigo. Ele não reconstrói ou ironiza as convenções de gênero, emprestando na verdade enquadramentos e métodos que comprovadamente funcionam direto dos clássicos; também não é fã de brincar com as percepções do espectador, a não ser talvez em sua fotografia e sua trilha-sonora, ou seja, nos níveis mais básicos de uma obra cinematográfica. Estranhamente, esse é o trunfo de A Bruxa, que apresenta uma história linear, obstinada em ser compreensível sem precisar mastigar e explicar ao espectador o que está acontecendo. A Bruxa não é genial ou cheio de reviravoltas – é simplesmente um filme excelente em tudo o que faz.
Mas e as outras duas “lições” anteriores do artigo? Bom, de fato A Bruxa é em larga escala sobre um medo muito real, ou pelo menos sobre um sentimento muito real: a culpa, e especialmente a culpa cristã. É também um filme sobre como pressões e crenças de uma sociedade atrasada empurravam os oprimidos e oprimidas por ela em direção a um caminho sombrio – em sua proposta de mostrar “como são criadas as bruxas”, o filme de Robert Eggers expõe um nervo pulsante da sociedade da época que retrata que segue existindo, mesmo que por baixo dos panos, na sociedade atual. É um filme importante, e urgente, que se preocupa com a relação de seus personagens com o social mais do que se preocupa com suas jornadas emocionais em si.
O que salta aos olhos, no entanto, é o cuidado dispensado a cada elemento da produção, a cuidadosa reconstituição de época e a milimétrica manipulação da fotografia e da trilha-sonora para nos colocar no estado de espírito paranoico e culpado de seus personagens. Com um grupo de performances uniformemente espetaculares (Anya Taylor-Joy é uma revelação), uma filosofia severa, um roteiro absolutamente perfeito e uma direção rígida e assertiva, A Bruxa é simplesmente um pedaço espetacular de cinema – e quando isso acontece, não importa o gênero, o movimento ou a época, vale a pena assistir.
O Olhar Geek volta na próxima quarta-feira (15).