2016 começou com o final amargo de um dos maiores ícones LGBT de todos os tempos: em 10 de janeiro de 2016, David Bowie faleceu aos 69 anos. Foi uma perda incrível para muita gente em muitos estratos da sociedade, mas mais ainda para a comunidade LGBT, que Bowie, mesmo sendo (ao que tudo aponta) heterossexual, inspirou e alimentou durante sua carreira, como todo grande artista pop. Seu Ziggy Stardust inspirou milhões de meninos e meninas a quebrar com os papeis rígidos de gênero e assumirem uma identidade queer, enquanto sua carreira camaleônica inspirou muitos artistas que mudaram a conversa social em torno da população LGBT.
A partir disso, o ano de 2016 continuou abismal para os membros da comunidade LGBT. Da deposição de um governo que ajudou a passar a lei da união civil igualitária nos estados brasileiros até a eleição de outro posicionamento político nos EUA que não deve trazer benefícios para a situação das pessoas LGBT por lá e pelo mundo inteiro, 2016 se tornou um ano exemplar não pela evolução da causa gay, mas pela explicitação da onda de retaliação que cresce após as muitas conquistas que alcançamos. Quem encontra mais espaço na sociedade incomoda mais gente, e é isso que vimos refletidos nos movimentos em direção à direita tanto aqui quanto nos EUA.
Tivemos a tragédia de Orlando, nos EUA, no começo do ano, e ainda assim tanta gente procura negar que isso teve a ver com LGBTfobia. Colocar o atentado na conta do Estado Islâmico ou do islamismo é irresponsável – esse foi um homem que agiu a partir de frustrações próprias e cultura em que ele vivia ditava isso como vergonhoso ou errado. É um tema que o documentário The Mask Live In, disponível na Netflix, explora muito bem – a toxicidade da nossa ideia de masculino é grande demais até para os rapazes heterossexuais suportarem.
Essa mesma temática é explorada em filmes como Goat (com Nick Jonas) e a comédia Joshy, entre outras que estrearam no circuito independente em 2016. A ideia de que a nossa concepção de masculinidade é errada e execrável está sendo preparada por anos de narrativas da cultura pop. Ano passado, o documentário The Killing Ground explorava os resultados da masculinidade tóxica na comunidade universitária, enquanto ainda em 2013 O Lobo de Wall Street parodiava essa masculinidade exagerada e fisgava fãs que amavam o filme por todas as razões erradas.
Espelho em arco-íris
A parte mais interessante de 2016 para a comunidade LGBT, no entanto, talvez tenha sido a forma como a comunidade do entretenimento se posicionou fortemente contra essa reação direitista aos direitos conquistados pela comunidade. Da produção de filmes que buscavam normalizar e retratar a experiência gay (do independente Daddy ao mais comentado King Cobra), passando pelo posicionamento de apresentadores e jornalistas de talk show em apoio à comunidade e à causa durante o ano, especialmente em torno do atentado de Orlando, pela primeira vez parecia que a TV estava do nosso lado – usando um termo generalizador que agrega a indústria do entretenimento inteira.
Seja a motivação deles manter o público consumidor fiel ou de fato ajudar a causa, personagens gays se tornaram de praxe na televisão por mais um ano, a não ser onde de fato não eram: nas séries de super-heróis. A CW e a Fox ousaram se embrenhar nessas águas perigosas com Supergirl e Gotham, respectivamente, embora um herói LGBT ainda precise estrear na TV (ao contrário de no cinema, onde os produtores simplesmente poderiam explicitar a panssexualidade de Deadpool, já afirmada nos quadrinhos). De Pinguim a Alex Danvers, os personagens gays na TV de super-heróis ainda são coadjuvantes ou vilões.
Ao mesmo tempo, enquanto a abundância de representatividade ocorria na TV, as reivindicações da comunidade LGBT se tornaram outras: contar histórias queer não seria o bastante, mas conta-las bem seria uma responsabilidade na qual a comunidade estaria de olho. Não faltou crítica quando The 100 expôs uma tendência extremamente desproporcional das séries de TV matarem suas personagens lésbicas – especialmente sem desenvolvê-las como o mesmo respeito e consideração que dispensavam aos personagens heterossexuais. De Lexa (The 100) à Mimi (Empire), o ano criou mártires da representatividade por todo o canto na época da Peak TV.
Como grande espelho da representatividade LGBT no momento, a TV não exatamente decepcionou, mas se manteve firmemente sobre o olhar vigilante da comunidade. Isso porque o cinema continua vergonhosamente atrás nesse sentido, sem personagens gays em grandes filmes de verão, visto que os estúdios tem medo do “efeito China” na bilheteria. Um herói LGBT ainda é um grande tabu na ficção cinematográfica mainstream – o que faz com que a comunidade se volte para filmes de produção e distribuição independente, que nem sempre seguem o caminho esperado para o sucesso. Futuros Rocky Horror Picture Show’s, por assim dizer – por falar nisso, o clássico ganhou adaptação para a TV com Laverne Cox no papel principal.
Resistência é a chave
Através da minha rápida e dispersa recapitulação, portanto, é fácil perceber que o ano para a representação LGBT no entretenimento não foi tão ruim quanto o ano para a representação LGBT em canais governamentais. O progresso lento e instável é o que a comunidade se condicionou a esperar nas últimas décadas, e o baque de um governo de direita nos EUA e no Brasil pode criar um problema em relação a essa lenta evolução, mas isso é papo para 2017 – desde que fiquemos de olho a partir de agora.
Em todos os sentidos, essa é a palavra e a ação necessária – ficar de olho. Se o ano de 2016 nos ensinou alguma coisa, é que progresso não significa perfeição, e que a exigência, respeitabilidade e inteligência de organizações que olham pelos nossos direitos e devem também ser vigiadas por agentes independentes dela. As storylines com pessoas transexuais e personagens lésbicas e gays melhoraram após toda indignação em torno da morte de Lexa, e assistimos algumas séries abraçarem seus personagens LGBT com mais entusiasmo após perceberem que poderiam perder o favor de seu público com um estalar de dedos.
Séries como Faking It e Mistresses, pouco vistas, entraram em contado com a GLAAD Media para criar suas histórias envolvendo personagens transexuais, e isso é exemplar. Buscar roteiristas e conselheiros de dentro da comunidade é uma lição que até o cinema voltado para essa temática precisa aprender – há um motivo pelo qual gostamos e celebramos mais Tangerine e Weekend do que A Garota Dinamarquesa e Amor por Direito. As coisas funcionam melhor quando uma voz da razão, de dentro da comunidade, age junto com escritores e profissionais de fora dela.
Em uma época de Donald Trump presidente dos EUA e homofobia correndo solta em uma das cidades mais LGBT do mundo (Orlando) – em um ano em que uma das maiores lendas LGBT da história nos deixou antes mesmo de completarmos um mês de 2016, vigilância é a palavra chave. Estamos ainda no primeiro quarto do século XXI, e décadas de luta nos trouxeram aqui, o que só significa que muitas décadas ainda estão pela frente. Exigir e recompensar diversidade com qualidade é essencial para montarmos um ambiente amigável para histórias LGBT em Hollywood, um ramo de indústria que influencia e dirige tantas discussões sociais que afetam situações muito reais, para muito além das telas.
Em suma: 2016 pode ter acabado (e já vai tarde), mas a luta ainda não.