Bem-vindos de volta ao OMG!, a nossa coluna quinzenal de assuntos conectados à comunidade LGBT. Quando o primeiro trailer completo de Procurando Dory foi lançado, no finalzinho de maio, a internet não explodiu só em nostalgia e fofura, mas também em absoluta alegria queer por conta de um pequeno trecho do vídeo que parecia trazer um casal lésbico, que se espantava ao descobrir um polvo no lugar de seu bebê no carrinho.
A cena, destacada por muitos usuários do Twitter e de outras redes sociais, ficou conhecida rapidamente com aquela que revelava com razoável certeza que Procurando Dory teria o primeiro casal abertamente LGBT em filmes animados da Disney/Pixar. Não é pouca coisa – a maior empresa de animação do mundo incluindo um casal lésbico em seu lançamento mais destacado do ano (talvez da atual década), a continuação de um dos filmes mais lucrativos de toda a história da empresa, que sem dúvida quebraria recordes de bilheteria (como anda quebrando, inclusive).
E a verdade é que faria sentido para Procurando Dory ter um casal lésbico. A Disney tem feito acenos muito discretos para uma abertura para personagens LGBT, seja na dupla de vizinhos da protagonista de Zootopia, interpretada por muitos como um casal gay (eles são creditados como os Oryx-Antlerson, os únicos personagens com nomes hifenados do filme), seja na rápida cena em Frozen na qual o dono de uma loja visitada por Anna aponta para a sua família através de uma porta envidraçada – lá dentro, vemos outro homem adulto e quatro crianças.
A evolução natural dessa lenta caminhada na direção da inclusão de personagens gays nas animações da empresa seria trazer um casal cuja relação não fica no campo da insinuação ou das entrelinhas. Vale lembrar também que a estrela de Procurando Dory, a dubladora Ellen DeGeneres, é uma das principais ativistas pelos direitos LGBT da mídia americana, desde que se assumiu lésbica no finalzinho dos anos 90, quando era estrela de sitcom. Casada com a atriz Portia de Rossi (Scandal, Arrested Development), é concebível que Ellen tivesse puxado a sardinha da Disney/Pixar para a sua causa e os pressionado para incluir um casal LGBT no filme.
No entanto, pouco mais de uma semana depois do trechinho de trailer ser notado com esperança por usuários do Twitter, uma subsequente matéria da Variety, que mandou um de seus jornalistas para uma das exibições-teste do filme, apontou que o casal gay, assim como os outros que citamos acima, não é confirmado pelo filme. Vemos as duas mulheres de passagem, e somos deixados para adivinhar qual tipo de relação elas dividem – de fato, a passagem é tão rápida que nem mesmo descobrimos seus nomes ou ouvimos muito de suas vozes.
A estrela DeGeneres ainda tentou aplacar os ânimos ao dizer que o filme terá uma personagem transgênero, apontando que o “Tio Raia”, professor de Nemo no filme original, será reapresentado nesse filme como Tia Rhonda, uma arraia em meio ao processo de transição de gênero. Na dublagem original, o personagem costumava se chamar Professor Ray, um trocadilho com a palavra sting-ray (arraia, em inglês) – agora, aparentemente, ele será uma sting-Rhonda.
É um passo enorme à frente, de fato, se esse ponto for trabalhado mesmo que brevemente na trama, mas nossa confiança na Disney não é exatamente a mesma após toda a confusão com um simples casal lésbico em um papel de figuração. Se os produtores não estão confortáveis em confirmar um casal LGBT em um papel pequeno, quão confortáveis estarão em mostrar uma personagem trans? Não insinuar, mas claramente mostrar. Só saberemos dia 30 de junho, quando o filme estrear no Brasil, mas o pé atrás continua firmemente ali.
Furaram a fila da Disney
Duas empresas de animação contemporâneas ocidentais já tomaram a dianteira que a Disney não quis tomar. A LAIKA, empresa responsável por A Noiva Cadáver (2005), Coraline (2009), Os Boxtrolls (2014) e o vindouro Kubo e a Espada Mágica (que chega dia 13 de outubro ao Brasil), colocou um personagem abertamente homossexual em seu Paranorman (2012), e o fez propositalmente de forma que a sexualidade do moço, o atleta Mitch dublado por Casey Affleck, não fosse um grande ponto de trama, mas estivesse absolutamente clara.
É um exemplo perfeito, sinceramente, de exatamente como as coisas deveriam ser feitas nesse sentido: um personagem não precisa, e nem deve, ser definido por sua sexualidade, mas num mundo em que homofobia ainda mata (vide os 50 de Orlando, é claro), é preciso de personagens ficcionais que sejam assertivos sobre suas sexualidades e vivam tramas que se originam ou passam por ela. Numa cena no finalzinho de Paranorman, Mitch é convidado para sair por Courtney (Anna Kendrick), e a resposta do atleta é ótima: “Isso parece uma ótima ideia. Sabe, você vai amar meu namorado! Ele adora comédias românticas”.
O personagem LGBT de Como Treinar seu Dragão teve um momento de “saída do armário” mais discreto, mas continua fazendo parte do cânone da franquia, segundo o próprio diretor/roteirista Dan DeBlois. Em uma cena em que vê Stoico e Valka, recém-reunidos, brigando como o casal nunca dissolvido que são, Bocão solta esse duvidoso pedaço de informação: “É por isso que eu nunca me casei… Bom, por isso e por uma outra coisinha”.
A fala foi interpretada por alguns fãs como Bocão assumindo ser gay para o público, e Dan DeBlois mais tarde contou a história de como a ideia surgiu: na verdade, foi uma improvisação do ator Craig Ferguson, que dubla o personagem. Ferguson queria que a fala fosse mesmo uma espécie de saída do armário para Bocão, porque sempre viu o personagem assim – assumidamente gay, o diretor e roteirista DeBlois deixou a fala ficar no filme e declarou em qualquer entrevista em que fosse perguntado que esse era mesmo o significado dela.
Claro, ainda não vimos Bocão com um namorado, ou mesmo um interesse romântico, e é improvável que a franquia explore isso tão cedo, se é que vai explorar um dia. A inclusão desse pequeno pedaço de informação, no entanto, veio com naturalidade e não mudou radicalmente a forma como o público vê o personagem, que segue sendo um alívio cômico dos bons – é um passo adiante do que o que a Disney se mostrou disposta a fazer em seus filmes, mas também não é ideal.
TV e animes, os pequenos paraísos
Como cada vez mais é o caso sempre que abordamos algum assunto relacionado à representatividade, seja de qual minoria ou grupo oprimido estejamos falando, a TV está anos-luz à frente do cinema. A representação de personagens LGBT em desenhos animados na TV não é nem novidade, nem notícia – em 2014, após longa controvérsia entre os fãs, a voz de Marceline em Hora da Aventura, talvez o programa animado mais popular da atualidade, confirmou em conversa com os fãs que, segundo o criador da série Pendleton Ward, sua personagem e a Princesa Jujuba tiveram um romance no passado.
Em Gravity Falls, um elogiado programa animado da Disney Channel/Disney XD, o episódio final da série, exibido esse ano, teve dois policiais homens declarando seu amor um pelo outro – publicamente! A Nickelodeon embarcou no trem ainda mais cedo, com The Legend of Korra, onde a protagonista do título e a personagem Asami Sato claramente sentem atração uma pela outra. No final da série, as duas estão de mãos dadas, olhando-se nos olhos, encarando a viagem através de um portal. Os criadores mais tarde confirmaram que esse seria o começo do romance entre elas.
Ainda mais pioneiro foi Coragem, o Cão Covarde, da Cartoon Network, que em 2006 colocou no ar o episódio “The Mask”, em que Kitty e Bunny, duas personagens femininas, acabavam juntas após muitas confusões. O romance entre as duas é tão claro na tela quanto é cuidadosamente não-explícito. O episódio ficou tão marcado com os fãs que pipocam artes e fanfics até hoje explorando a relação das duas, mas o criador John Dilworth nunca confirmou o casal LGBT do episódio.
Já os dois personagens gays de Hey, Arnold! (1996-2004) são confirmadíssimos pelo idealizador da série, o animador Craig Barlett. Segundo ele, o Professor Simmons, um dos mestres de Arnold durante a série, era homossexual, e o personagem Eugene Horowitz também, uma espécie de “proto-gay – ele se sente desconfortável perto de garotas”. O episódio “Arnold’s Thanksgiving” é onde esse subtexto fica mais claro, com o Sr. Simmons e seu “amigo” Peter sendo praticamente apresentados como namorados.
Quem aí lembra de Sakura Card Captors, um de muitos animes japoneses que viraram mania aqui no Ocidente durante o final da década de 90 e começo dos anos 2000? Pois o anime estava cheio de personagens homossexuais, mesmo que muitos tenham sido censurados no “remake” ou na redublagem americana. Os criadores publicamente disseram que tinham em mente fazer uma série que fosse confortável de se assistir para minorias sexuais, e por isso mostraram, entre outras coisas, o adorado casal Yukito e Touya, o crush nada disfarçado de Sakura por uma professora e a paixão de Tomoyo pela protagonista.
E esse não é o único anime famoso por incluir muitos personagens LGBT – basta dar uma olhada na história de Sailor Moon para encontrar vários momentos em que a série se abriu para personagens não-héteros. O relacionamento mais famoso, no caso, é aquele entre Sailor Urano e Sailor Netuno, mas outros exemplos não faltam, a maioria deles “disfarçado” ou cortado sem cerimônia na transição do anime do Japão para o Ocidente. De fato, sobrevivem dentro da cultura do anime vários subgêneros bem desenvolvidos focados em histórias de personagens LGBT, e a ocorrência deles em animes de outros “nichos” não é nem um pouco rara.
Feitos durante a década de 1990, esses exemplos de progressos em animação que citamos foram barrados pela transição cultural, e mostram que sobrevive uma cultura artística próspera e bem-sucedida comercialmente de maior aceitação de personagens LGBT na animação – ela só, infelizmente, não está tão perto de nós.
Precisamos de mais!
Obviamente, além da comoção em torno do casal lésbico estar ou não em Procurando Dory, a outra grande questão relacionada à representatividade LGBT que andou circulando nos últimos meses foi a sexualidade da rainha Elsa, personagem do filme Frozen, da Disney. Com uma sequência a caminho, o fenômeno de bilheteria (que ultrapassou US$1 bilhão mundialmente) enfrentou pressão dos fãs para fazer de Elsa a primeira personagem principal homossexual da empresa. Os espectadores (e até a dubladora Idina Menzel) querem ver Elsa com uma namorada, e a pressão só vem aumentando.
“Filmes são tão importantes porque não só eles atingem todas as cidades do país, mas atingem públicos internacionais, e são a nossa principal matéria de exportação cultural”, disse a presidente da GLAAD Media, Sarah Kate Ellis, em entrevista à The Hollywood Reporter. “Nós estamos pressionando os estúdios há anos para que isso aconteça, mas agora as redes sociais estão ao nosso lado, a comunidade está ao nosso lado. Vai ficar difícil ignorar o som de tantos protestos e apoios à causa”.
Como de costume, o obstáculo para uma personagem abertamente gay em um filme da Disney é o mercado internacional – países como a China e a Rússia tem políticas extremamente retrógradas quanto à homossexualidade, e não se mostraram tímidos no passado em barrar a exibição de filmes que discordassem de seus valores. Dada a importância do mercado internacional para o desempenho econômico de um filme, isso é um obstáculo e tanto para os estúdios, que teriam que confiar nas suas próprias decisões artísticas para ultrapassarem essas barreiras políticas e ideológicas. Um filme ainda pode se tornar fenômeno no mundo inteiro apoiando e representando a comunidade LGBT? Aos poucos, a resposta para isso começa a ser um mais enfático sim, e por isso é preciso continuar pressionando.
“Eu acho que chegamos a um ponto em que queremos dizer ‘chega!’”, disse Sarah Kate Ellis. “Esses retratos de pessoas LGBT ajudam jovens e crianças LGBT a se reconhecerem, a saberem que tem validade, a saberem que está tudo bem se eles forem gays”. Retratos de personagens gays em filmes infantis causam crianças a “se tornarem” gays tanto quanto A Pequena Sereia transformou meninas e meninos por aí em meio-humanos, meio-peixes nos anos 90 – ou seja, é simplesmente algo que eles não são capazes de, e nem querem, fazer.
Mostrar e normalizar personagens gays em animações atraentes para crianças, contar histórias honestas que não escondam sua sexualidade tanto quanto personagens héteros não escondem as suas nesses mesmos filmes (e com os mesmos limites, é claro), por outro lado, pode causar impacto positivo em uma geração que vai crescer com menos preconceito, com mais consciência, e com menos medo de que a comunidade LGBT tenha uma agenda secreta para transformar todos os habitantes do mundo em pessoas gays. Crianças precisam aprender que amor é amor, e que nem todo mundo ama alguém do sexo oposto – e o cinema tem a chave para isso.
A OMG! retorna no próximo dia 8 de julho
No dia 31 de janeiro de 2014, foi ao ar, no último capítulo de Amor à Vida, o primeiro beijo homossexual em uma novela da Rede Globo. O sucesso do casal Félix e Niko, interpretados respectivamente por Mateus Solano e Thiago Fragoso, permitiu essa conquista, transformando a novela de Walcyr Carrasco em um importante capítulo da história da televisão brasileira. CLIQUE AQUI e relembre esse momento descrito no livro 50 anos de novelas – A trajetória da representação homossexual e o beijo gay que parou o Brasil.