Bem-vindos de volta à OMG!, a nossa coluna quinzenal no Observatório do Cinema sobre assuntos que dizem respeito à comunidade LGBT. No curso das quatro primeiras edições do nosso espaço, a OMG se dedicou a analisar várias facetas da representação LGBT nas telas, desde a possibilidade latente de um super-herói gay nos filmes da Marvel ou na DC até a já nem tão pequena quantidade de séries que trazem as nossas histórias para a programação americana. Dessa vez, no entanto, a história aqui na nossa coluna é outra, um cruzamento importante entre a cultura de celebridades do cinema e da TV e o nosso movimento: os aliados héteros da causa LGBT.
Esse não é um assunto sobre o qual muitos membros da comunidade se sentem confortáveis para falar, especialmente porque fomos criados em uma cultura em que fomos tão pouco considerados e reconhecidos. Esse é também um assunto no qual, sempre que há discussão, há também muita discordância – por isso, vale deixar claro que a OMG! busca ver todos os lados da discussão ao mesmo tempo em que é obviamente, e admitidamente, influenciada pela opinião e ativismo pessoal deste que vos escreve. Sou um, e não pretendo falar por toda uma comunidade – mas tenho um espaço para falar, e essa é a minha opinião.
Nas últimas semanas, especialmente, vimos muitas manifestações de apoio à causa LGBT por parte de celebridades que não são de nossa comunidade. Embora hoje em dia estejamos mais ou menos constantemente nas pautas dos sites de notícias de entretenimento, muito graças às redes sociais, nas quais a nossa voz não pode simplesmente ser ignorada por qualquer canal de mídia minimamente responsável, desde o crime de ódio na boate Pulse, em Orlando, a comunidade do entretenimento parece ter se unido em solidariedade. As reações vieram de talk-shows, gravações, vídeos e músicas especiais lançadas mirando na caridade e na informação.
Astros da Broadway (que são também rostos familiares de filmes e séries por aí), tanto gays quanto héteros, gravaram uma versão de “What the World Needs Now” (veja aqui), mais astros se juntaram na canção original “Hands” (aqui), e 48 celebridades dolorosamente recitam os nomes e detalhes das vidas de cada uma das vítimas em um vídeo produzido por Ryan Murphy (veja acima).
Em incidentes recentes isolados, o ator Jesse Eisenberg (o Lex Luthor de Batman vs Superman) parou em uma rua da Europa para discutir com os membros de um protesto anti-gay; e Alexander Skargsard, enquanto divulgava o seu A Lenda de Tarzan, conversou sobre as cenas de sexo do seu personagem LGBT de True Blood. Enquanto isso, James Franco faz polêmica com King Cobra, filme passado na indústria do pornô gay, assim como Paul Rudd, que faz casal com Steve Coogan em um novo filme.
Representatividade vs Visibilidade
Essas manifestações, é claro, são todas positivas. Com raras exceções, Hollywood em geral é um local muito progressista em relação à aceitação da comunidade LGBT, e sempre se colocou como um apoio financeiro e moral à causa. O fato de que o GLAAD Media Awards pode premiar e honrar vários aliados héteros da indústria por ano é testemunha de que eles não são o inimigo. Especialmente quando fazem ações que se dirigem à caridades que lidam com a comunidade LGBT, o apoio de celebridades como essas é importante (ou melhor, essencial) para que a causa ganhe visibilidade. Eles tem uma plataforma, e é mais do que justo que eles usem-na.
Justamente essa é a questão, no entanto. Visibilidade nos ajuda, teoricamente, a sermos aceitos por uma cultura que sempre será mais ampla do que a nossa, mas representatividade é o que nos empodera para tomarmos espaços que anteriormente nos foram negados. Um astro heterossexual pode carregar a nossa mensagem para além dos limites da nossa comunidade, mas só um astro homossexual pode expandir esses limites e nos dar mais espaço numa indústria cuja influência social é tão clara quanto a do entretenimento. No final das contas, ver uma celebridade que respeita, aceita e ajuda a causa LGBT é bom, mas ver uma celebridade LGBT nos representando é muito melhor.
O debate de representatividade vs. visibilidade é um que, vira e mexe, nós como um movimento social sempre temos. No ano passado, por exemplo, ele aconteceu em torno de A Garota Dinamarquesa, filme estrelado por Eddie Redmayne sobre uma das primeiras mulheres transexuais a ser operada no mundo, a pintora Lili Elbe. Indicado ao Oscar pelo papel (como muitos astros cisgênero fazendo personagens transgênero antes dele), Redmayne sempre foi gentil, consciente e grato em suas deferências à comunidade durante a promoção do filme, como é, aliás, do seu feitio.
A Garota Dinamarquesa tem mais problemas (cinematográficos e sociais) do que minhas mãos podem contar, mas não é um filme prejudicial à causa. Raso, talvez, mas ainda capaz de iluminar a mente de muitos espectadores que seriam atraídos pelo brilho de Oscar em torno do filme. O filme co-estrelado pela maravilhosa Alicia Vikander ainda carrega a tocha da visibilidade, e não podemos tirá-la dele, mas sua completa falta de insight sobre a condição da transexualidade não pode ser culpada em outra coisa a não ser a ausência de quaisquer profissionais trans na produção do filme.
É um contraste absurdo principalmente com outro filme do ano passado, o independente Tangerina, ou com os atores e roteiristas trans de Transparent, ou com o aconselhamento que Faking It, da MTV, e até o novelão Mistresses, da ABC, pediram à GLAAD na hora de escrever suas histórias sobre personagens transgênero. Representatividade importa não só porque ela produz narrativas mais conscientes e positivas sobre uma minoria oprimida, mas principalmente porque é importante que espectadores LGBT se vejam na tela, e que se crie uma cultura de socialização (mas não se padronização) da experiência LGBT.
A questão da representatividade é também uma questão de inclusão, e de permissão para que os membros dessas minorias sexuais vivam e construam seus sonhos com liberdade, tranquilidade e aceitação. Essa missão, nenhum aliado hétero será capaz de cumprir por nós – Jared Leto ganhando um Oscar por um papel trans em Clube de Compras Dallas não leva a uma maior abertura para profissionais trans se realizarem em Hollywood.
Nos dê sua voz
Isso também é mais ou menos o que passa pela minha cabeça quando celebridades heterossexuais se mobilizam pela causa LGBT. A mensagem é sempre positiva, e algumas vozes são ainda mais eficientes que outras (Anne Hathaway, Lady Gaga e Jeffrey Tambor são os nomes que primeiro vem à cabeça como bons exemplos de ativismo), seja por sua obstinação ou por seu discurso mais consciente e deferente à representação falha que eles, por natureza, estão fazendo em seus lugares de fala. Nós não queremos afastar esses aliados, porque o trabalho que eles fazem e continuam fazendo é importante, e o nome e rosto deles ainda são capazes de levantar milhões por nossas causas – mas a distinta sensação é a de que falta alguma coisa.
Não é uma questão de diminuir a importância do aliado heterossexual, portanto (nem a celebridade nem o seu amigo “evoluído” ou “mente aberta”), mas de ter consciência de que o trabalho de verdade no movimento é para que não precisemos mais deles. A ideia é alistar tantos “aliados” que não precisemos chama-los assim – ou você é contra nós, ou é simplesmente um ser humano com um nível mínimo de decência.
A ideia é também ser capaz de colocar nossa voz e alcançar um público grande através de personalidades e meios de comunicação que sejam nossos. A ideia é ser capaz de escrever nossa própria história, um privilégio que as maiorias de todo o tipo (sexuais, raciais, e até o gênero masculino) sempre tiveram. O conselho mais antigo e batido para qualquer escritor é: escreva sobre o que conhece. Enquanto formos retratados, representados e narrados por outros que não sejam nós, nossa experiência vai sempre ser vista de forma incompleta, insensível ou adulterada na ficção – e essa é definitivamente a marca de um povo oprimido.
A lição que fica para aliados heterossexuais por aí, portanto, é só uma: nos dê sua voz. Não só reconheça a nossa existência e lute, você, pelo fim do nosso apagamento, como também ceda o seu espaço, a sua atenção, para discursos que não são seus, e sim nossos. Se você realmente quer ajudar na compreensão e na aceitação da nossa experiência, traga um jovem LGBT para conta-lo essa experiência, e repita-a (ou melhor até, lhe dê o espaço para falar na sua plataforma).
Nós gostamos do fato de que existem apresentadores de talk-show que muito publicamente apoiam a causa (praticamente todos), mas gostamos mais do fato de uma apresentadora em especial, Ellen DeGeneres, continuar sendo recordista de audiência, de prêmios votados pelo público, e agora até de bilheteria. Nós gostamos dos discursos respeitosos e conscientes de Jeffrey Tambor e outros atores que representaram pessoas LGBT no cinema e na TV, mas gostamos mais do fato de que Laverne Cox aos poucos está se tornando uma das estrelas mais legítimas das séries americanas.
Nós apreciamos que Jesse Eisenberg pare para combater grupos ultra-religiosos homofóbicos, mas apreciamos mais quando Sir Ian McKellen é quem rebate essas acusações na mídia. E nós amamos que mais filmes sejam produzidos sobre o universo LGBT por gente notável como James Franco, Paul Rudd e Steve Coogan, mas amamos muito mais quando Andrew Haigh ou John Cameron Mitchell ganham notoriedade por realiza-los. É um instinto básico de querer se ver representado, e não encenado ou substituído – nós precisamos de vocês, mas adoraríamos não precisar. Pode ser pedir demais, mas lutem com a gente para cheguemos lá.
A OMG! retorna na sexta-feira, dia 22/07.