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The Handmaid's Tale | Primeiras Impressões - 2ª Temporada

Aviso: Contém spoilers do episódio e da temporada anterior

Acima de tudo, The Handmaid’s Tale é um alerta. Um grande aviso, pintado em vermelho, que nos mostra o quão rapidamente a liberdade e a democracia podem cair por terra, sendo substituídas pela ditadura e por políticas extremistas que reduzem o ser humano ao estado de animal – completamente privado de seus essenciais direitos. A História já nos ensinou isso – mais de uma vez vimos isso acontecer, tanto no Brasil, quanto em diversos outros países ao redor do mundo.

É essa humilhação do ser humano que vemos no primeiro episódio da segunda temporada da série da Hulu, intitulado June. Levadas a um grande estádio, as aias, incluindo Offred (Elisabeth Moss) são colocadas diante morte, em uma experiência aterradora, que demonstra toda a crueldade desse regime. Tratadas como cachorros raivosos, utilizando algo muito similar a uma focinheira, elas caminham, forçadamente, sob agressões, até a forca.

Logo aqui, o diretor Mike Barker nos entrega uma das sequências mais angustiantes de toda a série, nos lembrando imediatamente do que se trata The Handmaid’s Tale. Fazendo bom uso de planos fechados, majoritariamente no rosto de June/ Offred, Barker cria uma forte sensação de claustrofobia e confusão. Assim como ela, não sabemos o que está acontecendo e só nos damos conta da verdade, após ela própria descobrir o que se passa. O som fora da tela ressalta o fato dessas mulheres serem tratadas como animais, prestes a ir para o abate – refiro-me aos latidos de cachorros, que funcionam não apenas para deixar ainda mais clara a falta de esperança ali, como para que vinculemos tais sons às imagens dessas vítimas vestidas de vermelho.

Mas o sofrimento não acaba por aí – ninguém ali, de fato, morre e são todas levadas para o interior de um prédio, enquanto que o roteiro de Bruce Miller evidencia temáticas importantes dessa temporada: rebeldia e as consequências desses atos rebeldes. A primeira, claro, já estava presente na primeira, mas somente aqui passamos a ver, apropriadamente, os efeitos das ações de June – por bem ou por mal. Grávida, ela olha para as outras aias, enquanto uma delas, atrás da protagonista, tem sua mão queimada em um fogão, em uma cena que muitos podem ver como mero “pornô de tortura”, mas que evidentemente conta com o propósito de criar uma divisão, uma espécie de rixa, entre essas mulheres. Algo que somente descobriremos, se realmente aconteceu, nos próximos episódios.

Ainda mais importante que isso, é o aumento da sensação de que June está sozinha – é criado um profundo sentimento de solidão (além de tensão e angústia, claro), nesse trecho, que nos acompanha pelo restante do episódio – questão crucial para o funcionamento do que veríamos a seguir. E por que digo isso? Pois essa sensação, essa atmosfera acaba gerando incerteza, que é um dos pontos principais dos trechos finais do episódio. A protagonista parece estar prestes a escapar, mas não sabemos se alguém a verá, se ela será impedida no meio do caminho – todo o sofrimento que vimos até aqui reforça isso, visto que é gerada aquela percepção de que não há escapatória desse inferno. Quando, na realidade, há.

Enquanto tudo isso acontece, essa sucessão de sequências perturbadoras, que nos deixam praticamente grudados na tela, o texto de Miller ainda insere pontuais flashbacks, que tornam tudo ainda mais assustador. Praticamente vemos o início disso tudo, as políticas rígidas que já existiam momentos antes do golpe de Estado, e como essas foram substituídas pela verdadeira loucura do falso fundamentalismo religioso. Digo falso, pois a alta cúpula certamente não acredita no que prega, apenas faz uso disso para controlar as massas, dominando tudo através da suposta “vontade de Deus”.

Voltamos à questão do quão rapidamente tudo pode desandar. Como uma sociedade moderna pode regredir aos tempos da Idade das Trevas em uma questão de poucos anos. Mais angustiante ainda são os indícios de que tudo caminharia para esse lado, algo que Miller, tanto como roteirista, quanto como showrunner, insere repetidas vezes nos argumentos de seus episódios.

“Para o triunfo do mal só é preciso que os bons homens não façam nada”, a frase de Edmund Burke imediatamente vem à mente, enquanto June e seu marido assistem a televisão, testemunhando o atentado terrorista que daria início a Gileade. Não há culpa em qualquer um dos dois, claro, ou nos milhares que apenas assistiram os terríveis eventos tomando forma – incapazes de acreditar que a democracia poderia cair. Mas esse ponto é o que dialoga tão fortemente conosco, espectadores, que vivemos uma realidade frágil, com o radicalismo sempre à espreita.

Dessa forma, The Handmaid’s Tale sempre permanece atual, tanto pela questão do golpe, da ditadura, quando pela situação da mulher. A série da Hulu é um produto de seu tempo e, não por acaso, no fim do ano de 2017 vimos o escândalo envolvendo Harvey Weinstein e o nascimento do movimento #MeToo. Tudo isso caminha de mãos dadas e por isso digo que é importante que vejamos essa visão distópica do que poderia vir a ser, independente do quão violenta seja essa representação do futuro alternativo. O choque faz com que pensemos em tais assuntos e Bruce Miller, junto de toda a equipe por trás do seriado, sabe muito bem disso – trata-se justamente daquele alerta que falei no início do texto.

Mas isso tudo não estaria completo sem os dignos esforços do elenco da série como um todo e que, nesse première de temporada, tem como destaques Elisabeth Moss e Ann Dowd, a Tia Lydia. Moss, como sempre, não deixa de impressionar – destacando-se desde os tempos da saudosa Mad Men, a atriz nos proporciona com uma genuína interpretação, que simplesmente através do olhar já entrega tudo que há de ser dito. Moss oscila entre o pavor e a rebeldia com a maior naturalidade do mundo e, desde os minutos iniciais, já conquista toda a nossa atenção.

Dowd, por sua vez, é um dos maiores enigmas da série. Também extremamente sincera na atuação, ela encarna perfeitamente aquela que realmente acredita no que faz, mas, ainda assim, há uma certa melancolia por trás, misturada de amor por aquelas mulheres, contrastando essencialmente com o sofrimento pelo qual Lydia faz elas passarem. No fim, fica a dúvida: ela está meramente cumprindo seu papel, ou realmente quer fazer tudo aquilo? Talvez jamais saberemos, mas, ao menos, podemos aproveitar o belo trabalho de Dowd, mais que merecedora do seu Emmy de Melhor Atriz Coadjuvante, conquistado em 2017.

Dito isso, The Handmaid’s Tale certamente não é uma série fácil de ser assistida e tampouco sua produção quer que ela assim o seja. Trata-se de uma obra profundamente angustiante e Mike Barker, junto de Bruce Miller, deixam isso bem claro logo nesse primeiro capítulo da segunda temporada. Ainda assim, diante de toda essa tensão, dessa sombria atmosfera, existe esperança para a protagonista e, por conseguinte, para todas as mulheres ali. June se declara uma mulher livre, aparentemente liberta desse Estado totalitário.

Descobriremos, nos próximos episódios, quanto tempo essa liberdade vai durar.

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