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Tributo | David Bowie sempre foi um ator (mesmo quando não estava sendo)

Durante seus 69 anos, quase 50 deles vividos sob os holofotes, David Bowie atuou em uma variedade de filmes e séries de TV, construindo um legado cinemático que rivaliza com o seu legado musical. No mesmo ano em que lançava seu álbum de estreia, autointitulado, Bowie atuou no curta-metragem The Image, em que o rockstar britânico interpreta a criação bizarra de um artista que se volta contra o criador.

Foi quase 9 anos depois, no entanto, que Bowie se viu, já na posição de um dos ídolos musicais mais proeminentes do mundo, protagonizando um longa-metragem: O Homem que Caiu na Terra, do diretor Nicholas Roeg (Inverno de Sangue em Veneza), coloca Bowie como um alienígena humanoide que vem para a Terra com o plano ambicioso de levar água de volta para seu planeta moribundo, mas precisa ganhar muito dinheiro para construir sua nave de retorno antes.

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Elogiada, a atuação veio coroar um trabalho de muitos anos dedicados à arte dramática como aluno de Lindsay Kemp em Londres. A época em que estudou com Kemp, como David Bowie disse frequentemente em entrevistas posteriores, foi para ele a mais importante no sentido de dar espaço para que ele começasse a criar as várias personas e representações através das quais ele construiria sua carreira na música.

A grande questão com Bowie era essa: mesmo quando não estava em frente às câmeras de cinema e ouvindo o “ação!” de algum diretor, ele estava atuando. Uma parte enorme do legado dele vive para além dos acordes e das instrumentações de seus maiores clássicos musicais. Sem o ato de performance que era Ziggy Stardust, o personagem alienígena de gênero confuso que ele interpretou durante o lançamento e promoção do álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972), o impacto de canções como “Starman” se veria, talvez, reduzido.

Mais tarde na carreira, ele encarnaria ainda outros personagens que representaram outras fases de sua vida e de sua expressão como artista – celebremente, durante a época em que o vício em drogas e a fama repentina mais tomou conta da sua vida, ele criaria o Thin White Duke, um aristocrata de atitude errante e perigosa, que cantava canções de amor ardente sem sentir nada de verdade. “Gelo disfarçado de fogo”, nas palavras do próprio artista. Alguns anos depois, ele apareceria no filme alemão Cristiane F. em uma participação especial, performando a canção “Station to Station”, do álbum em que ele encarnou o Thin White Duke.

A carreira cinematográfica continuaria durante os anos 80, notavelmente no horror vampiresco Fome de Viver, dirigido por Tony Scott; no drama de guerra Furyo: Em Nome da Honra; no papel de Pôncio Pilatos em A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese; e, é claro, como o Rei dos Duendes no clássico Labirinto – A Magia do Tempo, de Jim Henson.

Nas décadas seguintes, Bowie apareceria esporadicamente nas telas, em papeis em sua maioria coadjuvantes, sob o comando de diretores como David Lynch (em Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer), Julian Schnabel (como Andy Warhol em Basquiat – Traços de Uma Vida) e Christopher Nolan (em O Grande Truque, como o inventor Nikola Tesla). Interpretando diferentes versões de si mesmo, apareceu em pontinhas cômicas em Zoolander, na série Extras, e em High School Band.

David Bowie em O Grande Truque

Se transformando para cada um desses papeis tanto quanto se transformava para suas diferentes personas dentro da música, Bowie consolidou a reputação mais do que merecida como um dos maiores artistas de performance que o mundo já viu. Seu status de ícone pop e sua influência em todos os cantos da cultura que produzimos desde o começo de sua carreira transcendem quaisquer dados objetivos que eu possa dar nesse texto. É difícil encontrar artista, na música ou no cinema, que já não tenha feito referência ou sido inspirado por algo que David Bowie fez. Se você que me lê agora não conhece a carreira do britânico tão bem, fique tranquilo: você sem dúvida ama algum artista que foi imensa e decisivamente influenciado por ele.

Hoje perdemos um daqueles artistas que podemos creditar como divisor de águas. A música pop, a cultura pop, a arte de performance – tudo se divide entre antes e depois de Bowie. Seu legado é essa combinação vibrante entre teatro, música e aquele algo a mais das propostas inovadoras, a confusão entre criador e criatura, ator e personagem, cantor e canção. Durante 69 anos, David Bowie nos deu uma ferramenta a mais para entendermos esse mundo confuso e essa condição humana angustiante que é a nossa. Sem o homem que caiu nela, a Terra parece um pouco incompleta.

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