Streaming

OMG! #10 | Alex Danvers, Pinguim e cia: por que é mais fácil fazer heróis LGBT na TV?

Estamos apenas há alguns meses dentro da fall season, e as séries de super-heróis já nos proveram não um, mas dois personagens que saíram do armário e se assumiram LGBT. Quando colocado assim, em uma frase só, em perspectiva, é verdadeiramente extraordinário (embora não devesse ser). Para efeitos comparação: em 14 filmes do universo cinematográfico Marvel, 9 dos X-Men da Fox, e 3 do universo cinematográfico DC, não temos nenhum personagem abertamente LGBT. Nenhum. E sim, estamos contando Mulher-Maravilha, Deadpool e Capitão América, mas ainda esperando a oficialização de algum deles. Em tempos de seca, qualquer goteira é milagre.

O curioso é que a proverbial goteira, no caso da televisão, vem se tornando cada vez mais prolífica. Os dois personagens que citamos no começo do texto são, é claro: Alex Danvers (Chyler Leigh), a irmã adotiva da Supergirl na série homônima; e Oswald Cobblepot (Robin Lord Taylor), o Pinguim de Gotham, trama sobre a juventude de Bruce Wayne pré-Batman. A história de Alex é uma mais tradicional de se assumir aos poucos para si mesma, para os pais e para a irmã – tudo desencadeado pela súbita paixonite por Maggie Sawyer (Floriana Lima), uma detetive de National City. No caso de Pinguim, como deveria ser com um vilão, é mais complicado e perturbador: ele se apaixona por Edward Nygma (Cory Michael Smith), o futuro Charada, após receber sua ajuda e apoio incondicional para se tornar prefeito de Gotham.

Alex Danvers e Oswald Cobblepot
Alex Danvers e Oswald Cobblepot

Como Robin Lord Taylor, que também é gay, apontou em uma entrevista, no caso de Pinguim a sensação de ser queer vem atrelada a essa conexão que ele nunca sentiu antes, pelo menos não desde a morte de sua mãe, de ter alguém com quem pode contar. A paixão e a descoberta da sexualidade tomam formas diferentes dentro das tramas de Gotham e de Supergirl, mas a verdade é que elas estão lá, evidentes e bem-sucedidas, mostrando que uma narrativa de super-heróis pode suportar uma trama e um personagem LGBT com naturalidade e competência, tratando-o da maneira como trata os desenvolvimentos de outros personagens.

Pinguim e Alex Danvers não são pioneiros, no entanto. No quarteto de séries formado por Arrow, Supergirl, Legends of Tomorrow e The Flash, uma pletora de outros personagens LGBT foram apresentados – e eles nem sempre são coadjuvantes ou vilões. A heroína Sara Lance, a Canário Branco, e o herói Curtis Holt, o Sr. Incrível, são ambos homossexuais, assim como Nyssa Al Ghull, uma das filhas de Ra’s Al Ghul em Arrow, o vilão Hartley Rathaway, o detetive de polícia David Singh, e o recém-introduzido Todd Rice, que assume o manto do herói Obsidian. Não é uma lista tão curta quanto era de se esperar, embora não seja tão longa quanto o ideal.

Jeri Hograth, de Jessica Jones

Indústria da representatividade

“Além das políticas de cada estúdio, ainda existe muito preconceito dentro do próprio universo nerd. Como cinema possui uma visibilidade maior, muitos estúdios ainda tem certo medo da repressão do conservadorismo do público”, me explicou a Jéss Souza, uma fã do gênero de São Paulo, quando perguntei por que a TV é mais receptiva a criação de um personagem LGBT. A questão dos estúdios e sua conexão íntima com a comunidade nerd que consome os seus produtos mais importantes e lucrativos do momento é interessante de se analisar, especialmente na casa de quadrinhos rival daquela de onde vieram todos os personagens citados nesse texto até agora.

A Marvel Studios [divisão de cinema], por exemplo, é atrelada à Disney, então as mudanças podem ocorrer de forma mais sutil, algo que difere das séries da Marvel [divisão de TV], que já possuem um tom mais sombrio e tem uma liberdade maior, tanto é que os personagens LGBTs da Marvel estão presentes apenas na TV por enquanto”, elaborou a Jéss – e ela está absolutamente certa.  Conforme estudo da GLAAD Media, que é a autoridade máxima em termos de representação LGBT no cinema e na TV, a Disney está entre os estúdios mais atrasados em relação a isso. O relatório de 2016 ainda não chegou, mas em 2015 a Disney não teve nenhum personagem LGBT em seus filmes lançados no cinema.

“Isso é algo que está mudando aos poucos, inclusive já foram feitas declarações dos diretores dos vindouros filmes de super-heróis que há a intenção de explorar a sexualidade de seus personagens, então nos resta torcer e aguardar pra que isso realmente ocorra”, disse ainda a Jéss. Torcer, aguardar e confiar que os estúdios verão além do resultado imediato para enxergar o legado que vão deixar para trás, eu diria. É possível que a inclusão de um personagem abertamente LGBT prejudique a bilheteria em países como a China e a Rússia, que são grandes mercados, e é disso que os estúdios têm medo – pelo menos por enquanto.

Curtis Holt (Echo Kellum) em Arrow

“É extremamente importante sim [que essa inclusão aconteça]. Há muitas pessoas, principalmente adolescentes e pré-adolescentes, que assistem as séries e se identificam com os personagens e suas batalhas internas, então mostrar esse processo de aceitação e de se assumir pra amigos e familiares serve como inspiração, pois mostra que é normal se sentir de tal forma, que está tudo bem ser LGBT, e que ele não está sozinho”, me disse a Jéss quando perguntei sobre a importância da representatividade. Poucas vezes ouvi o mesmo ponto, que eu como comunicador tento o tempo todo fazer, expresso de maneira mais eloquente.

Melhor que as palavras, no entanto, só a realidade: em um caso que também me foi apontado pela Jéss, uma leitora do The Hollywood Reporter deixou um comentário em uma matéria indicando que sua filha, de 13 anos, começou a chorar quando a família assistia o episódio de Supergirl em que Alex Danvers se assume. “Está tudo bem se eu me sentir assim também?”, teria perguntado a menina. É difícil pensar em uma justificativa mais clara para a urgência por representatividade.

Greg Berlanti, produtor das séries da DC

Toda essa conversa de legado e representatividade, no entanto, pode passar despercebida por uma indústria que se importa apenas com lucro – e é aí que entra o trunfo das séries da DC: Greg Berlanti. Talvez o grande produtor de TV da nossa era, Berlanti é um homem gay que coloca temas e personagens gays em suas séries. Tal e qual um Ryan Murphy do mundo nerd, Berlanti introduziu personagens LGBT em cada um de seus títulos de super-heróis da CW, e mostrou não só que narrativas nerds podem fazer sucesso apesar dos personagens gays, como fazem um pouco mais de sucesso por causa dos personagens gays.

A publicidade e a atenção que uma narrativa dessas gera, ainda hoje, não são de se subestimar. “Uma série com roteirista gay vai ter uma abertura maior pra incluir personagens LGBTs, pois ele entende a necessidade de representatividade, enquanto um roteirista heterossexual, por mais que apoie a causa, não saberá como é não ter representatividade na TV e nos cinemas, pois sempre teve em quem se espelhar […]. Um roteirista LGBT consegue escrever personagens LGBTs muito mais reais e de fácil identificação, até porque ele consegue se inspirar em sua própria vida e na comunidade a que pertence”, explica a Jéss.

E o mercado cinematográfico também está começando a perceber que representatividade não só importa como vende. A introdução de personagens como o Pantera Negra, que terá um filme dirigido, escrito e estrelado, ao menos em sua maioria, por profissionais negros, e a contratação de Patty Jenkins para dirigir o filme da Mulher-Maravilha foram movimentos recebidos com aplausos por fãs, jornalistas e leigos. O famoso pink money, que incentiva empresas a saírem em defesa da causa LGBT, chega com mais força do que nunca ao showbusiness, e isso é bom – com ou sem intenção, representatividade é bem-vinda.

Mulher-Maravilha (Gal Gadot)

Subtexto, o “armário” moderno

Há outra questão que precisa ser discutida, no entanto, e nós só resvalamos nela lá em cima na nossa coluna: a “prisão” (ou, mais apropriadamente, o armário) em que os personagens cinematográficos do gênero são mantidos, relegando sua sexualidade queer para o subtexto quando ela poderia (deveria) tomar a frente. Isso porque ela toma quando é heteronormativa, visto os muitos relacionamentos entre homem e mulher que vemos nesses filmes – Stark e Potts, Thor e Foster, Clark e Lois, Deadpool e Vanessa, Logan e Jean.

Recentemente, o roteirista da Mulher-Maravilha nos quadrinhos teve “a audácia”, como muitos fãs chamaram, de declarar que sim, a sua versão da heroína é LGBT, e já havia tido relacionamento com mulheres. Relacionamentos que estiveram nas páginas algumas vezes, implícitos em sua relação com Mera, a rainha de Atlantis e esposa do Aquaman, e em algumas outras instâncias. “Na época da criação dos personagens mais antigos dos quadrinhos, as editoras, principalmente a Marvel, não tinham muita abertura para publicar sobre personagens LGBTs, então se algum personagem fosse LGBT essa característica seria sutil e passaria despercebida, não era algo que você veria estampado na capa em letras garrafais e envolto numa bandeira colorida”, me lembra a Jéss.

Steve Rogers (Chris Evans) e Bucky Barnes (Sebastian Stan)

“Há anos se fala sobre isso, mas acredito que agora definitivamente chegou a hora de cobrar essa representatividade, e que pouco a pouco esses personagens vão sendo tirados do armário, e como alguns deles são personagens já consagrados e conhecidos do público, eles serem revelados LGBTs tem um impacto bem maior do que um personagem LGBT criado do zero, completamente novo e desconhecido, pois essa visibilidade atinge o público mais rapidamente”, explicou ainda minha entrevistada, lembrando que a mudança não é “só para agradar”, e sim para trazer uma representatividade importante com impactos muito reais.

Presos no subtexto junto com Diana, o Capitão América de Chris Evans nos filmes da Marvel e o Deadpool de Ryan Reynolds no universo X-Me não devem se libertar tão logo. É verdade, o Capitão não é LGBT nos quadrinhos, mas o subtexto dos roteiros do estúdio tem nos dito há tempos que o personagem segue uma narrativa queer, seja por seu sentimento de deslocamento no mundo moderno (“um homem diferente saiu do gelo”, diz ele em certo momento) ou por sua relação com Bucky Barnes. Deadpool, por outro lado, tem sua sexualidade extrapolada como uma característica importante nos quadrinhos, e os filmes por enquanto só exploraram um lado dela.

O que falta para o cinema de super-heróis sair do armário? A televisão certamente já saiu.

Sair da versão mobile