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Olhar Geek #14 | Arlequina e a exploração do corpo feminino em cinema, games e HQs

Permitam-me começar a coluna dessa vez com uma incursão pessoal: eu não fui criado em uma cultura em que super-heroínas eram tratadas com o mesmo protagonismo que super-heróis. Quando era mais novo, fui introduzido aos quadrinhos através de personagens como Wolverine, Ciclope, Batman, Bishop e, meu preferido (eu era uma criança excêntrica), Doutor Estranho. Dr. Stephen Strange era um cara poderoso, que se envolvia em histórias loucas e psicodélicas que eu mal entendia, mas amava.

Embora o Doutor Estranho não tivesse uma companheira fixa quando lia as suas histórias, às vezes ele “obtinha os serviços” da Enfermeira da Noite. A Enfermeira d Noite não vestia uma roupa muito reveladora, mas seus encontros com o Doutor costumavam acabar, além de com ela curando os ferimentos do herói, com os dois na cama, em estados variados de nudez. Mais tarde, quando cheguei à minha adolescência e comecei a desenvolver um discernimento maior de quais HQs conversavam comigo mais intensamente e eram minhas preferidas, mudei de revista predileta: minha heroína agora era invariavelmente a Miss Marvel, na época em que Carol Danvers assumia esse nome.

As histórias da Miss Marvel, quando eu as acompanhei, eram literatura pulp sem nenhuma vergonha de sê-lo. Raças alienígenas retratadas eram pintadas em cores primárias, a narração em off dos pensamentos de Carol era a mais explicativa possível, e o grupo de heróis que ela liderava incluía um robô transgênero engraçadinho.

Carol Danvers (Miss Marvel) em três quadros de sua revista-solo

Carol Danvers (Miss Marvel) em três quadros de sua revista-solo

Nessas histórias, a Miss Marvel era uma mulher tridimensional e poderosíssima, com uma tonelada de responsabilidade e bagagem sobre si, buscando assumir um papel de liderança mesmo que, como todo mundo, não soubesse exatamente o que diabos está fazendo. Era uma personagem envolvente e inspiradora em todos os sentidos, menos em um: a forma como era retratada fisicamente.

O problema aqui não é o corpo escultural de Carol – seu físico, na maioria das vezes, era mostrando como musculoso e imponente, respeitando a noção de como deveria ser o físico de uma guerreira. O problema é que os desenhistas da revista de Carol pareciam achar formas cada vez mais gratuitas de mostrar esse corpo em situações “sensuais” – seja com um painel de corpo inteiro em que os seios de Carol aparecem em evidência por baixo da camiseta cinza, cortada na barriga (heroínas usaram cropped muito antes de ser moda, infelizmente), ou os enquadramentos sempre “de baixo” que acentuavam ou a fenda estreita de seu uniforme no estilo “maiô” ou a forma como as botas de cano alto e a fita que ela amarrava na cintura (cujo propósito este que vos fala nunca entendeu) deixavam o traseiro da heroína em destaque.

Eu lia as aventuras de Carol Danvers porque eram divertidas do seu jeito trash, e porque Carol em si era a heroína que falava mais clara e francamente comigo. Eu procurava por um herói sincero, falho, cuja nuance fosse alguma diferente daquela clássica do anti-herói masculino, o mulherengo arrogante que o autor quer que amemos apesar de tudo isso, e não encontrava. Foi na vulnerabilidade que os escritores de Miss Marvel permitiram que sua heroína tivesse (e vulnerabilidade é diferente de fraqueza) que eu me conectei, e é um pouco deprimente pensar que não só essa vulnerabilidade só lhe foi permitida porque ela era uma mulher, como em meio a essa narrativa os autores e artistas ainda sentiam a necessidade de objetificar o corpo de Carol.

A Arlequina original, de 1992

Harley, uma história de sucesso

Como a maioria de vocês deve saber a essa altura, a personagem da Arlequina apareceu pela primeira vez em “Joker’s Favor”, episódio da primeira temporada de Batman: A Série Animada, em 1992. Como uma das raríssimas personagens surgidas em outras mídias que foram transplantadas para os quadrinhos, a Arlequina tem uma longa e rica história de mudanças não só de traje, mas também de ângulo de personagem. Introduzida apenas como a maluca “assistente” do Coringa, dublada pela marcante Arleen Sorkin durante a série, o sucesso da Arlequina foi tanto que ela se tornou uma regular na série, e talvez sua marca mais indelével no mundo dos quadrinhos até hoje.

Os detalhes da relação entre ela e o Coringa não chegaram exatamente a ser abordados no desenho, mas aos poucos a Arlequina acaba se distanciando de sua “grande paixão” (com muitas aspas), quando percebe que ele não a ama como diz que ama. Em “Harley and Ivy”, feito no ano seguinte, ela já travava uma amizade com a Hera Venenosa em que ambas se ensinavam muito sobre companheirismo, sororidade e outros conceitos que sem dúvida assistiram a personagem a se distanciar da sombra do seu relacionamento abusivo com o vilão – amizade que recentemente se transformou em um complicado romance nos quadrinhos.

Arlequina e Hera nas HQs

As primeiras transições e mudanças de visual e espírito da Arlequina, no entanto, não foram exatamente saudáveis – seja em sua versão Arkham Knight, em que a personagem veste um modelito com fortes conotações fetichistas (saia rodada, couro e cintura fina), ou em sua primeira encarnação com o Esquadrão Suicida, que mostrava progressivamente mais corpo com seu espartilho minúsculo e apertado, a Arlequina cada vez mais se tornou uma boneca de pano manipulável nas mãos dos escritores, artistas e editores da DC. É o mesmo paradigma das minhas antigas revistas da Miss Marvel: a história pode ser de empoderamento, mas o visual continua apelando especialmente para os hormônios dos leitores masculinos (adolescentes ou não) – tudo bem uma mulher chutar bundas por aí, desde que ela use uma roupa mínima no processo.

E é isso também que se reflete na recente polêmica em torno do tamanho dos shorts (ou falta deles) da Arlequina do filme Esquadrão Suicida. Em vários momentos do trailer já vemos que a personagem é constantemente explorada por seu corpo – como o visual da personagem, desde sua camiseta de “daddy’s lil monster” rasgada até os benditos shortinhos lantejoulados, passando pela maquiagem borrada e colorida, procura achar o apelo imediato e físico na premissa de uma mulher que foi entortada e quebrada por um companheiro abusivo. Não há nada de atraente no que a Arlequina se tornou graças à manipulação do Coringa, e convir com a noção de que há é no mínimo irresponsável da parte de qualquer artista, diretor ou roteirista que a retrate.

Novos uniformes da Mulher-Maravilha nas HQs e no cinema

Sexy, mas poderosa?

A Mulher-Maravilha foi criada pelo psicólogo William Moulton Marston, e muitos fãs da DC Comics não gostam muito de falar disso. Isso porque algumas declarações de Marston na época soam tão datadas que poderiam colocar (em uma análise rasa que procuraremos ultrapassar aqui) a própria simbologia da personagem como um forte exemplo de poder feminino em dúvida. Após começar a levar quadrinhos a sério graças ao estudo de um aluno que mostrou o quanto as revistas influenciavam comportamento e pensamento no público jovem, Marston fez com que sua missão fosse criar uma super-heroína forte e poderosa… com uma condição.

“Nem meninas querem ser meninas mais, porque o nosso arquétipo feminino não tem mais força e poder. Ao não quererem ser meninas, elas não querem ser suaves, submissas e pacíficas como boas mulheres devem ser. As qualidades fortes das mulheres se tornaram desprezadas por causa de suas fraquezas. O remédio mais óbvio para isso é criar uma heroína tão forte quanto o Superman, mas com todas as características de uma boa e bela mulher”, escreveu Marston no The American Scholar em 1943.

Como resultado desse pensamento de que criar uma heroína forte era condicional ao reforço de determinados aspectos considerados tradicionalmente femininos, Marston ainda aplicou um estranho pensamento que servia basicamente para satisfazer seus fetiches masoquistas – ele argumentava que, ao dar a sua heroína um laço de ouro e fazê-la frequentemente amarrar seus inimigos, e também ser amarrada por eles, estava advogando por um mundo em que a submissão fosse vista de maneira mais normalizada, e os “espíritos agitados” que causavam as guerras que o mundo vivia naquela época fossem pacificados por um simples sentimento de que era prazeroso (eroticamente, até) se submeter ao outro.

O pensamento de Marston, não precisamos nem falar, é uma distorção nojenta de todos os conceitos com o qual ele mexeu: o de personagens femininas fortes, o da própria prática do sadomasoquismo entre adultos com consentimento, etc. Isso não significa que a Mulher-Maravilha que vemos hoje é a mesma que Marston escreveu, que segue os mesmos princípios ou que quer representar a mesma coisa. Aos poucos, Diana Prince passou da fantasia de uma mente perturbada para um símbolo verdadeiro de força, resiliência e, sim, gentileza e afeição – mas não mais de submissão. A única coisa da qual ainda não conseguimos nos livrar é da maldita sainha minúscula.

E não é em todas as mídias que ela é empregada mais, tampouco. Nos quadrinhos, Diana passou um bom tempo com uma nova armadura – a que vocês podem ver na foto um pouco acima –, que me parecia muito mais adequada a uma guerreira constantemente batalhando em áreas de alto risco. O novo traje vinha cobrindo o corpo todo da heroína, como acontece desde sempre com trajes de heróis como o Capitão América, o Wolverine, o Batman, o Superman e, enfim, virtualmente todos os outros.

O uniforme “clássico” da Mulher-Maravilha fez um retorno apressado, no entanto, após o lançamento de Batman vs Superman, onde o diretor Zack Snyder e sua equipe decidiram restaurar a sainha curta, o decote generoso e todo o resto. A Diana de Zack, e ao que parece a do universo cinematográfico DC inteiro, é uma heroína de poder imensurável e determinação rígida, ambos os sentimentos interpretados com habilidade por Gal Gadot – mas ela ainda usa trajes mais reveladores do que suas contrapartes masculinas jamais sonhariam em usar. A seminudez da Mulher-Maravilha é uma forma de manter vivas suas raízes como produto de fetiche, e é um desrespeito à personagem e ao que ela representa hoje em dia.

Lara Croft, a Tomb Raider, através de anos de jogos

Armaduras e biquínis

Para essa última fatia da nossa coluna, queremos dizer: bem-vindos ao mundo dos games, onde todo e qualquer preconceito da comunidade geek é multiplicado ao quadrado. A resistência à presença feminina nos vídeo-games, seja entre os personagens jogáveis ou entre os próprios jogadores, é um fenômeno terrível e muito bem-documentado, seja em fóruns de RPG por aí ou em pesquisas que mostram que as personagens femininas ainda são esmagadoramente em menor número que os personagens masculinos, mesmo que a base de fãs da maioria dos jogos hoje em dia seja mais ou menos igualitária entre os sexos.

Um desses estudos mais recentes, no entanto, se concentrou na forma como as personagens femininas estão vestidas e são apresentadas durante os jogos. A evolução da franquia Tomb Raider é um bom exemplo – dos primeiros jogos que já traziam a fetichização clara do busto avantajado e famoso da personagem, passando pela evolução dos gráficos que trouxe cada vez mais detalhes para os figurinos mínimos da aventureira, a franquia mudou radicalmente de direção no reboot de 2013. Adeus shorts minúsculos e blusas cropped, olá a um visual mais sujo e apropriado para as situações do jogo, e a tendência de realismo sobre objetificação continuou nos títulos seguintes.

A franquia Tomb Raider não perdeu jogadores ou prestígio (de fato, o ganhou) ao tomar essa decisão. Enquanto isso, muitos RPGs por aí ainda criam “duas versões” das mesmas armaduras para jogadores homens e mulheres – e a versão feminina, é claro, é muito mais “sexy”, e com muito menos cobertura do corpo da personagem.

Traje feminino em RPG

O erro das franquias e empresas que continuam insistindo nessa tendência de sexualizar o corpo feminino de maneira exagerada, e isso vale para todas as mídias, é só um: eles presumem que o público masculino não vai comprar histórias de mulheres que não vão apelar para a sua libido.

O resultado dessa mentalidade são personagens como a vilã Coelha Branca, dos quadrinhos do Homem-Aranha; ou a Rainha Branca, dos X-Men; ou os filmes da Mulher Gato com Halle Berry e da Elektra com Jennifer Garner. O resultado é uma série de histórias que pensa em colocar a mulher em um uniforme apertado e “fetichizável” antes de pensar em coloca-la em uma história realista e interessante – a Marvel tem feito um trabalho decente em remover essa tendência de seus filmes (ao menos após a primeira aparição da Viúva Negra em Homem de Ferro 2).

Para o plantão de contrariados que vai apontar para filmes do Thor e do Capitão América como exemplos de fetichização da (semi-)nudez masculina, fica o aviso da falsa simetria. A exposição do corpo masculino é feita de forma menos frequente, e muito normalmente como uma forma de afirmar a força, e não a sensualidade, do personagem. A nudez masculina é vista do ponto de vista masculino, e a nudez feminina… também. Enquanto isso, sem sexualização exagerada nos últimos filmes, a Viúva Negra virou a preferida dos fãs da Marvel para uma aventura solo. Aparentemente, construir personagens complexos e interessantes (até mulheres, veja só!) é bom para os negócios – quem diria.

A Olhar Geek retorna no dia 19 de agosto.

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