O escândalo começou na tarde insuspeita do dia 7 de maio, quando os primeiros rumores surgiram de que não só a intérprete da namorada do Homem-Aranha, Mary Jane Watson, já havia sido escalada, como ela era Laura Harrier, até então mais conhecida por seu pequeno papel em Unforgettable. Tais rumores foram rapidamente sufocados, e esquecidos, mas já naquele dia um mar de fãs caiu em cima da suposta decisão, clamando que “sua Mary Jane” só poderia ser, como nos quadrinhos, uma mulher branca (e ruiva, mas essa não era a questão, mesmo que muitos fingissem ser).
Mais de três meses depois, no dia 18 de agosto, o The Wrap adiantou outra informação até o momento não completamente confirmada: Zendaya, outra atriz afro-americana escalada para o elenco de Spider-Man: Homecoming, é quem interpretaria Mary Jane. E sim, “não completamente confirmada”, a essa altura, é quase só uma formalidade – ninguém da produção se prontificou a desmentir a informação, e pessoas de dentro da Marvel (Stan Lee e James Gunn, mais notoriamente), deram entrevistas dando a informação como certa e apoiando a “decisão”.
Se Zendaya vai interpretar Mary Jane, então, o que isso significa? Kirsten Dunst famosamente encarnou a personagem nos três primeiros filmes no cinema, ao lado de Tobey Maguire como Peter Parker. Kirsten, naturalmente loira, pintou o cabelo de vermelho para os três filmes – e ninguém se pronunciou sobre isso. Tiramos das cartas, então, que o problema seja o cabelo. E se você tem um problema com uma Mary Jane negra, por que tem?
O argumento que mais se ouve ultimamente advém de uma discussão muito mais complicada que vem acontecendo há algum tempo e tende a acontecer cada vez mais – a do whitewashing hollywoodiano. Como os exemplos aí em cima não negam, é algo recorrente escalar atores brancos como personagens orientais, árabes, nativo-americanos, negros e qualquer outra etnia que você imaginar. Na Hollywood antiga, passava batido (alguém se lembra de Mickey Rooney em Bonequinha de Luxo? Imaginem o quão terrível seria isso hoje em dia); na Hollywood moderna, continua passando – o problema é que o filtro do público aumentou.
“Precisamos enxergar a diferença entre ser negro e ser branco no mundo. As realidades não são equivalentes na sociedade, assim como nos filmes e na televisão. Personagens e atores brancos sempre foram perfeitamente representados na história de Hollywood e da dramaturgia brasileira, por exemplo, bem diferente dos personagens e atores negros”, me explicou a Julia Helena, de Campinas, quando a perguntei sobre a diferença entre whitewashing (em termos técnicos, escalar um ator caucasiano em papel não-caucasiano) e o reverso, como aconteceu com Zendaya.
“Esse discurso me parece igual ao da suposta existência do ‘racismo reverso’: mais birra do que um questionamento que deva ser levado em consideração”, concluiu a Julia. Vamos ser diretos aqui: racismo reverso não existe. E como parece que um discurso sempre se conecta com o outro que vamos abordar aqui, é bom reafirmar: não existe e nunca existiu. Racismo não é algo que se resume apenas às atitudes das pessoas, mas a todo um sistema que oprime e torna invisível a experiência de vida de qualquer pessoa não-branca. Não é tão difícil de entender – não é porque você não é racista (ou acha que não é), que o mesmo se aplica para a sociedade e os sistemas que a governam.
What Happened, Miss Saldana?
Em uma sociedade racista, então, o que criadores de 40, 50 anos atrás faziam, mesmo que não fosse com a famigerada “má intenção”? Criavam personagens majoritariamente brancos que não só deixavam uma larga parcela de seu público se vendo mal representada, como efetivamente pioravam a situação social ao perpetuar um apagamento da experiência não branca da cultura pop. Pantera Negra, Falcão, Máquina de Guerra, Luke Cage – não só esses personagens vieram muito depois, como são muito pouco para representar a diversidade dentro da cultura e da comunidade negra, ao menos se comparada à diversidade que existe entre os tipos e estilos de personagens brancos.
E de quem é a culpa? “A falta de representatividade no entretenimento não é algo que surgiu ontem, então fica difícil colocar a culpa somente na indústria ou nos diretores”, refletiu minha outra entrevistada, a Andressa Cruz. “Devemos analisar o problema como um todo. Ambas as partes deveriam fazer com que o universo cinematográfico seja mais abrangente: a indústria financiar mais projetos com atores de diversas etnias não-brancas e os diretores insistirem na contratação desses atores”. O mesmo vale para qualquer outra indústria: o esforço precisa ser conjunto em direção a uma melhora, e não separado a fim de apontar o dedo um para o outro.
De forma finalmente energética (depois de quase oito anos com histórias dominadas por personagens brancos), a Marvel está se esforçando genuinamente para fazer parte da solução. Uma substituta negra para Tony Stark nas HQs faz sentido; criar novos personagens como o Mosaic (um novo herói Inumano, negro, capaz de “pular” de corpo em corpo) também; incluir heróis e heroínas muçulmanas (Kamala Khan, a Miss Marvel) e asiáticas (Amadeus Cho, o Hulk) também; e se aproveitar das liberdades de uma adaptação para buscar uma maior diversificação do elenco também! Uma só dessas coisas não faria tanta diferença. Todas juntas talvez façam.
E se você não quer acreditar em mim, acredite na Julia: “É muito reconfortante ver isso acontecendo. Mulheres negras em papéis não subalternos significam que, de alguma forma, estamos avançando. Conforta-me saber também que uma nova geração poderá crescer com uma ideia diferente da minha, por exemplo, sobre o papel do negro na sociedade”, ela me disse. Encontrar o máximo de lugares possível para pessoas não-caucasianas na nossa cultura pop é importante porque ela existe como uma reflexão do nosso tempo – e seguirá existindo como uma reflexão incompleta caso não mostremos a experiência de pessoas de todas as etnias, religiões, sexualidades e gêneros.
“Assim como pinturas rupestres são registros de uma determinada sociedade, nosso entretenimento também é”, completou a Andressa. “A representatividade é importante, pois dá o direito da pessoa se enxergar em determinada situação como indivíduo e como coletivo. Um exemplo é como meninas de cabelos cacheados e crespos têm aceitado a sua identidade após ver a presença de mulheres com cabelos naturais na mídia. Quanto mais pessoas não-brancas se sentem representadas na mídia, mais elas se afirmam como povo”.
Um exemplo que deve ser notado de como as coisas mudaram nos últimos tempos é a cinebiografia Nina, retratando a cantora e ativista pelos direito civis dos negros Nina Simone. A escolhida para interpretá-la foi a atriz Zoe Saldana, mais conhecida por seus papeis em Avatar e na nova franquia Star Trek, onde encarnou uma personagem negra marcante da cultura pop, a Tenente Uhura. De uma família diversificada etnicamente, Saldana precisou usar maquiagem para escurecer o rosto e próteses para “alargar” o nariz a fim de interpretar a cantora de traços marcantes – e considerados estereotípicos dos negros -, em uma atitude que foi criticada por muitos, inclusive pela filha da cantora Nina Simone.
“Existem diversas atrizes que se encaixam no fenótipo de Nina que poderiam ser escaladas para o papel, porém a escolha de Zoe exemplifica como atores e atrizes negros de peles mais claras são mais aceitos e acabam conquistando mais papéis”, observou a Andressa. De Uzo Aduba (Orange is the New Black) a Audra McDonald (seis vezes vencedora do Tony), passando por Viola Davis (How to Get Away with Murder), impossível negar que ela está certa. Por que Zoe, então? Por que fugir do fenótipo de uma personagem (real!) negra não é obstáculo para Hollywood, mas o contrário (com uma personagem fictícia) sim? Por que para você é?
“Por isso mesmo a representatividade: sabendo-se que a mídia num geral dita padrões de beleza, e na história ocidental da humanidade, esse padrão sempre foi branco, atores negros ocupando esses espaços são de extrema importância para a desconstrução de noções dominantes de beleza. Fazer com que o povo negro se enxergue é inclusive atribuir poder às identidades individuais e coletivas”, explicou ainda a Julia. “Sabendo a realidade na qual negros e negras estão inseridos, seria muita ilusão achar que a representatividade no cinema e na televisão resolveria uma opressão estrutural. Mas como já disse: representar uma classe significa dar poder social a ela, para que se reconheça em sua própria essência”.
Mulan e Matt Damon
Zendaya não é o único ponto de convergência recente dessa discussão, no entanto. 28 de julho foi outro dia de furor em torno do mesmo tema, quando vimos pela primeira vez o trailer de A Grande Muralha, épico co-produzido entre Hollywood e a China sobre a construção, é claro, da Muralha da China. O filme, que é o maior em orçamento da história do país, tem um dos grandes diretores chineses de todos os tempos (Zhang Yimou, conhecido por Herói e O Clã das Adagas Voadoras), e mistura fantasia e realidade, infelizmente, em mais de um sentido.
Ao retratar a construção de um dos mais épicos monumentos de toda a humanidade, A Grande Muralha mistura fatos históricos com dragões gigantescos contra os quais os chineses tem que lutar, e mistura heróis que poderiam muito bem fazer parte da força de trabalho que construiu a muralha com… Matt Damon, Willem Dafoe e Pedro Pascal. É uma reedição do mito do “salvador branco” com o qual outro país do oriente, o Japão, já sofreu em O Último Samurai – só troque Tom Cruise por Matt Damon. O problema é que, agora, o público chinês não quer mais saber disso.
Em uma épica rechaçada da escalação, a atriz Constance Wu (Fresh Off the Boat) escreveu: “Não é sobre culpar ninguém, mas sobre apontar para a repetição da noção racista que as pessoas brancas são melhores que as pessoas de cor, e que as pessoas de cor precisam de salvação através da força branca. Quando vocês continuam fazendo filmes assim, vocês estão dizendo isso. Estão. Sim, estão. Queiram ou não. Nós não precisamos de salvação. Gostamos da nossa cor e da nossa cultura. Das nossas forças e da nossa história. Não precisamos ser salvos de nada” – confira o texto completo aqui, vale a pena.
E um sinal de que Constance está (obviamente) certa é outra notícia recente: a de uma petição começada por fãs para que a Disney escale uma atriz chinesa, ou ao menos de descendência chinesa, para ser Mulan. Conquistando sua meta de assinaturas rapidamente, a petição fazia oficial um pedido que é significativo mesmo que não seja dirigido a um estúdio que cometeu muitos pecados recentes – olhe para o recente Mogli (Neel Sethi, Ben Kingsley, Idris Elba, Lupita Nyong’o), para o vindouro Uma Dobra no Tempo (Mindy Kaling, Ava DuVernay, Oprah Winfrey) e até para O Quebra-Nozes (Misty Copeland)!
“Vocês acham que só um enorme astro de cinema pode vender um filme? Isso nunca foi uma garantia total. Por que não tentar fazer melhor? Se atores brancos são perdoados por ter um ou outro fracasso de bilheteria, porque atores de cor não podem ser? E que incrível seria poder dizer que foi você que fez o filme que correu esse ‘risco’ de escalar uma pessoa de cor como seu herói, e foi um sucesso? Faça essa escolha. Eu sei que é preciso de bolas para fazer isso. Você não quer ter bolas?”, acusou certeiramente Wu em outro pedaço de seu texto.
“Eu acho que por um longo tempo isso pareceu ser a norma como espectador, e eu aceitei isso – filmes de grandes estúdios americanos seriam estrelados por pessoas brancas, você não consegue fazer dinheiro sem essas pessoas brancas, e etc”, escreveu Sarah Kuhn, autora do livro Heroin Complex, sobre heroínas asiático-americanas em Hollywood. “Agora, essa ideia parece positivamente arcaica. Nós vimos espetáculos enormes com elencos branqueados naufragarem [vide o recente Deuses do Egito], e vimos o entusiasmo e excitação que ocorre quando um personagem de cor é escalado em um grande filme – olhe para o Pantera Negra em Capitão América: Guerra Civil”.
Aos poucos, cada vez mais, parece que desmontar o racismo dentro da estrutura de Hollywood não é só uma excelente ideia – é também um bom negócio.