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OMG! | Está na hora de termos um super-herói gay no cinema

Bem-vindos à OMG!, a nova coluna quinzenal do Observatório do Cinema. O nome é abreviação para Observatório do Mundo Gay!, e a ideia é trazer temas importantes, bacanas, divertidos ou interessantes relacionados a comunidade LGBTQ e ao mundo do entretenimento. Afinal, não só somos uma comunidade singularmente ligada nesse mundo de cinema, TV e cultura pop, como também precisamos reconhecer a importância dela em termos de representação e ideologia.

É exatamente disso que vamos falar no nosso primeiro texto, inclusive: representatividade. Como o leitor aqui do site deve ter acompanhado, nas últimas semanas vimos alguns movimentos interessantes dentro da Marvel Studios para tornar o seu universo um pouco mais inclusivo em vários sentidos. Para começar, Capitão América: Guerra Civil introduziu o segundo super-herói negro do panteão do estúdio, o Pantera Negra, que deve ganhar filme-solo em fevereiro de 2018. Além disso, Kevin Feige, o presidente da Marvel Studios, se declarou “comprometido” com um futuro filme solo da Viúva Negra, pedido antigo dos fãs que só pode ter demorado tanto por conta do estúdio não confiar no potencial da uma super-heroína mulher para segurar seu próprio filme.

Mais próximo ao nosso ponto, no entanto, está a declaração de um dos diretores de Guerra Civil, Joe Russo, sobre as “grandes chances” da Marvel incluir um personagem LGBT no futuro da franquia. No ano passado, quando a Collider perguntou à Kevin Feige se a editora/estúdio introduziria um personagem LGBT ao seu universo cinematográfico, o produtor respondeu: “Na próxima década? Eu acho que sim, com certeza”. Não é uma resposta definitiva, como o leitor deve ter percebido. Especialmente na frase de Feige dá para sentir de longe o cheiro de uma esquivada hábil e treinada da espinhosa pergunta, que envolve mais questões do que pode parecer (vamos abordar isso daqui a pouco).

Ainda assim, mesmo com essas declarações totalmente vagas, parece que uma parte da comunidade geek (ou talvez devamos dizer do público imenso que hoje acompanha as aventuras da Marvel) não está feliz com a possível presença de um personagem LGBT em seus filmes de super-heróis. Como evidenciam vários comentários postados on-line, o preconceito e a noção de que pessoas LGBT não devem ser representadas em filmes do gênero ainda existe abundantemente – e é exatamente por isso, e não “à despeito disso”, que precisamos de um super-herói gay no cinema.


Kevin Feige, produtor e chefão da Marvel Studios
Kevin Feige, produtor e chefão da Marvel Studios

Por que isso importa?

De acordo com o último relatório da GLAAD, organização que é referência no assunto de inclusão LGBT na mídia (veja aqui), em 2015 só 17,5% dos grandes lançamentos dos maiores estúdios de Hollywood continham personagens gays, lésbicas, bissexuais ou transgênero. Ainda no mesmo relatório, a GLAAD notou que os principais gêneros em que personagens LGBT não são incluídos são exatamente os que mais geram bilheteria, e nos quais os filmes de super-heróis e grandes franquias se encaixam – ação, ficção científica, fantasia, terror. O “cinema de gênero”, como é chamado pelos críticos, contou com personagens LGBT em 6,4% de seus títulos de 2015.

Atualmente, nos EUA, pouco mais de 9 milhões de pessoas vivem suas vidas como gays, lésbicas, bissexuais ou transgênero assumidas, o que conta uma porcentagem de 3,4% da população americana (aqui a fonte). Parece uma porcentagem em que a quantidade de representatividade que temos atualmente faz sentido, né? Vamos comparar resultados, então: em uma pesquisa conduzida na Inglaterra, um país gritantemente mais permissivo que os EUA, 49% dos jovens entre 18 e 24 anos se declararam não-heterossexuais. Mesmo entre adultos e idosos, cujo fator geracional garante uma quantidade menor de aceitação e abertura para uma pesquisa governamental a respeito de sexualidade, 23% se declararam gays, lésbicas ou bissexuais (fonte).

A ideia de que números e pesquisas possam “medir” a quantidade de pessoas LGBT em determinado país de forma exata não se sustenta em um mundo em que as gerações mais velhas viveram uma vida de opressão em que foram ensinadas que a heterossexualidade era a norma e que tudo o que desviasse dela publicamente era punível com isolamento social e um preconceito palpável e físico. Se a geração mais jovem, os chamados “millennials”, se vê em um mundo com mais permissividade, ainda estamos longe de eliminar pressões machistas que impulsionam meninos gays a ficarem no armário e fetichizam relações lésbicas, impondo opressões sistemáticas para as meninas.

A questão de representatividade fica delicada quando se fala de números, no entanto, porque não é em números que ela se aplica. A ideia de que uma fatia da população deveria ser representada em tela “proporcionalmente” a parcela do mundo real que ela ocupa é rasa porque não leva em consideração o papel e a influência do mundo do entretenimento na conjuntura social, e porque não enxerga o quanto o cinema e a TV foram até hoje parte de um sistema que impõe a heterossexualidade compulsória – ou seja, que assume o heterossexual como norma mesmo que o personagem em questão não tenha expressado sua sexualidade de forma explícita.

Como um artigo excepcional do site ScreenCrush (veja aqui) nota, representação LGBT no cinema é menos uma questão de entretenimento e satisfação do público e mais uma questão de direitos humanos. “Há uma conexão absoluta entre as imagens que vemos na tela, sejam nos filmes, na TV, nos quadrinhos, nos vídeo games ou na música, e a evolução ou regressão da aceitação da comunidade LGBT na sua rica diversidade dentro da sociedade”, diz Ray Bradford, da GLAAD, no artigo. Em outras palavras: ter personagens gays, lésbicas, bissexuais e transgênero no cinema é importante porque o cinema é uma ferramenta de influência enorme sobre a discussão social e a direção em que ela está indo.

Para provas disso, basta procurar sobre a influência do movimento Blaxploitation dos anos 70 na luta pelos direitos civis dos negros ou tentar entender a ligação de filmes como Perdidos na Noite (1979), Filadélfia (1993) e Priscilla, a Rainha do Deserto (1994) com a visibilidade progressiva da causa LGBT no âmbito social. Como a principal força do mercado cinematográfico no momento, os filmes de super-heróis precisam abraçar a diversidade não só para representar melhor o seu público, mas porque, como já dizia um famoso mentor de Peter Parker: com grandes poderes vem grandes responsabilidades. Manter-se do lado certo da história e ajudar a progressão de direitos humanos para pessoas LGBT faz parte dessas responsabilidades – e promessas, “na próxima década”, “compromissos” e “fortes chances” não são o bastante para cumpri-las.


Hulkling e Wiccano se beijam em Young Avengers: The Children’s Crusade #9 (2012)
Hulkling e Wiccano se beijam em Young Avengers: The Children’s Crusade #9 (2012)

Por que a resistência?

Como vários artigos por aí podem te apontar perfeitamente, já existe um bom grupo de personagens LGBT nos quadrinhos de super-heróis, tanto na Marvel quanto na DC, então a questão nunca foi exatamente “mudar” a sexualidade de um personagem na transposição quadrinhos-filmes (embora nós não vejamos muito problema nisso tampouco). Na DC, a Mulher Gato, ainda não reintroduzida no novo universo cinematográfico, é bissexual. Recentemente em um relacionamento, a Hera Venenosa e a Arlequina também são.

Já no lado da Marvel, Estrela Polar, membro dos X-Men, foi protagonista do primeiro casamento gay dos quadrinhos mainstream; America Chavez, conhecida como a super-heroína Miss America, é uma jovem latino-americana lésbica; Karma, membro-fundadora do grupo Novos Mutantes, que em breve vai ganhar filme pelas mãos de Josh Boone (A Culpa é das Estrelas), foi uma das primeiras personagens lésbicas dos quadrinhos; Hulkling & Wiccano, Daken (filho do Wolverine), Mística, Loki, Homem de Gelo, Sera (que é uma super-heroína transgênero), James Howlett, Rawhide Kid… A lista é literalmente enorme, entre personagens já introduzidos cuja bissexualidade – ou, ao menos, fluidez sexual – ainda pode ser explorada a criações totalmente novas que trariam um pouco de cor para o exclusivamente hétero mundo do universo cinematográfico Marvel.

Se o problema não é falta de material nos quadrinhos, será que Kevin Feige e companhia são homofóbicos? A resposta mais provável é não, especialmente levando em conta a dedicação de muitos dentro da indústria cinematográfica e televisiva a causas e interesses da comunidade LGBT, como demonstra uma recente onda de boicotes aos estados americanos da Carolina do Norte e da Georgia pela tentativa de passagem de leis consideradas LGBT-fóbicas. O problema em Hollywood, por incrível que pareça, não é uma concentração alta de executivos preconceituosos e conservadores – notavelmente liberal, o showbusiness americano não sente ódio de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros; sente medo, e um medo que dói no bolso.

Filmes de alto orçamento como as produções de super-heróis não podem arrecadar bem apenas dentro dos EUA. Custando para cima de US$200 milhões para serem feitos e mais muitos dólares para serem promovidos, esses filmes precisam performar bem nas bilheterias do mundo inteiro para se provarem investimentos interessantes para o estúdio, e isso inclui mercados grandes como a China e a Rússia, onde a aceitação de pessoas LGBT é baixa e as políticas governamentais são virtualmente copiadas da Idade Média. A Marvel não tem medo de perder alguns espectadores homofóbicos nos EUA, mas tem medo de perder mercados inteiros no contexto internacional.

E é aí que chegamos num impasse, é claro: não dá para exigir que estúdios e produtoras trabalhem sem visar lucro. Antes até de serem empreendimentos artísticos, a Marvel e outras marcas de Hollywood são empresas, e o que importa em uma empresa é o dinheiro. Se os filmes da Marvel Studios não tivessem feito tanto dinheiro quanto fizeram, provavelmente não estaríamos acompanhando as aventuras de seus personagens até hoje. Mas será que, agora que o estúdio é uma marca estabelecida, e que os próprios roteiristas e diretores já disseram que “é hora de começar a correr riscos”, uma das medidas não seria começar a puxas as barreiras pela representatividade maior de personagens LGBT em tela?

Demanda e o que não falta, afinal, visto as constantes perguntas da mídia sobre o assunto e a forma como fãs se agarram a subtextos e se apropriam da história através de fan-fictions, fan-theories e fan-arts que destacam relacionamentos homossexuais no MCU. Se a Marvel não nos dá a realidade, é claro que vamos criar uma fantasia – de certa forma, é uma pressão que colocamos sobre o estúdio e uma forma de mostrar que o público está pronto sim para personagens LGBT salvando o mundo, e mostrando força, determinação, correção moral, complexidade e humanidade exatamente como acontece com todos os heróis da Marvel e da DC no cinema até agora.

Usar a força da marca e da mídia para promover aceitação, inclusão e discussão no mundo inteiro, especialmente em países como a China e a Rússia onde pessoas LGBT sofrem a opressão do governo por suas orientações sexuais, é parte da missão que um gigante do entretenimento deveria assumir para assegurar que seu legado seja um pouco mais que uma montanha de dólares. Passou da hora da Marvel parar de pensar nos cheques, e começar a pensar nos livros de história – em longo prazo, os resultados podem ser bons para os negócios tanto quanto seriam bons para a sociedade.

A coluna OMG! retorna no dia 28/05.

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