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Crítica | O Menino que Queria Ser Rei

Compreensivamente, criou-se muito ranço em torno da mera ideia de um reboot, sobretudo de uma história já muito contada. Tivemos, há não muito tempo, uma insossa versão da lenda de Robin Hood e, no ano anterior a esta, um estranho longa de Guy Ritchie sobre Rei Arthur e os cavaleiros da távola redonda. Pois bem, acontece que entre diversos reboots, ao menos um é capaz de não só justificar sua existência como também se distinguir dentro da linha de produção.

É o caso de O Menino que Queria Ser Rei, que adapta a lenda de Arthur e Excalibur como uma aventura infantil em contexto pós-Brexit. A princípio, é uma ideia bizarra misturar fantasia lúdica com política, mas contando com o roteiro e a direção de Joe Cornish, que há oito anos fez seu ótimo primeiro longa Ataque ao Prédio, o resultado chega a ser encantador em mais de um sentido da palavra. Este é facilmente outro ponto alto para o cinema infanto-juvenil britânico recente.

Nesta versão, ambientada em um mundo “fortemente dividido” e no qual “os homens se tornaram fracos”, o garoto Alex (Louis Ashborne Serkis) e seu amigo Bedders (Dean Chaumoo) se veem como os únicos que podem salvar a Bretanha de uma antiga ameaça: a feiticeira Morgana (Rebecca Ferguson), que ressurge em todo tempo de crise e é capaz de comandar um exército de mortos-vivos. Porém Alex, por ser descendente de Arthur, pode empunhar a mítica espada Excalibur, única arma capaz de ferir a feiticeira.

Se tudo parece como uma mera cópia de A Espada é a Lei, Cornish faz questão de modificar ou inverter uma série de detalhes que dão à história uma cara nova sem perder fidelidade. O mago Merlin, que presta ajuda a Alex em sua jornada, surge tanto na forma jovem (Angus Imrie) quanto envelhecida (Patrick Stewart) e reside em uma lanchonete fast-food. Já Lancelot e Lady Kaye, membros da irmandade de Arthur, começam como uma dupla de bullys, Lance (Tom Taylor) e Kaye (Rhianna Dorris).

Ainda mais impressionante que Cornish, que em Ataque ao Prédio chutou o pau da barraca com violência explícita, drogas e muitos palavrões, pareça tão em casa com um projeto feito especialmente – mas não exclusivamente – para crianças. Neste caso, o fato de ser dedicado a esse público-alvo condiz bastante com as posições que o longa toma em relação a questões pertinentes, não só sobre política como também aceitação e coletividade. A esperança para proteger mas também transformar um mundo duro e injusto está nas crianças.

Apesar dos temas densos, que ainda incluem alcoolismo e abandono, O Menino que Queria Ser Rei os aborda da mesma maneira que Paddington 2 tocou na questão da xenofobia: através do encantamento e da alegria contagiante. Claro que, por ter uma ameaça mais fisicamente presente, o filme de Cornish tenha alguns momentos sombrios em seu decorrer, mas a visão que se tem do horizonte é sempre otimista, colocando ênfase na capacidade de se erguer e lutar pelo que é melhor para todos – as evoluções de Lance e Kaye são cruciais para provar esse ponto.

Acaba sendo um testamento ao cinema infanto-juvenil britânico, que sempre se mostrou capaz de exorcizar sentimentos de frustração e medo através de aventuras repletas de elementos mágicos. O universo Harry Potter já capturou muitos leitores e espectadores ao trazer essa existência de um mundo mágico paralelo ao nosso, onde nossos problemas são praticamente mundanos em comparação a uma ameaça bem mais poderosa mas onde também persiste um senso inabalável de esperança. O Menino que Queria Ser Rei também trabalha com essa coexistência de mundos, inclusive estabelecendo e brincando com suas regras de forma espirituosa mas ainda coerente com a narrativa.

De certa forma, a manifestação desse mundo mágico ainda foi atualizada para o raciocínio das crianças mais habituadas aos videogames. A maioria das situações de combate que ocorrem ao longo do filme se comportam de uma forma gamificada, onde os heróis são encurralados e devem derrotar uma certa quantidade de oponentes para retornar ao mundo comum – é como Devil May Cry para crianças. Isso, aliás, não é um demérito para o filme, pois é algo que sempre ocorre de forma orgânica à trama.

Além da mensagem forte e da execução criativa, o elenco chega como uma cereja no topo desse bolo. Louis Ashborne Serkis faz jus ao pai Andy, enquanto Dean Chaumoo é um dos sidekicks mais fofos recentes, inclusive quando aprende a realizar a magia de multiplicação. Taylor e Dorris, por sua vez, são presenças mais carismáticas que o esperado. Mas o destaque, facilmente, é Merlin – não falo de Patrick Stewart, que aparece bem pouco, mas sim do novato Angus Imrie, que com sua voz aguda e expressão corporal se comprova como um talento promissor para outras produções aventurescas e desavergonhadas como essa.

A única decepção do elenco fica por conta de Ferguson, não por falta de talento mas sim por sua escassez de cenas e texto fraco. Quanto ao filme em si, o ponto fraco pode ser definido como seus efeitos digitais, que nem sempre são convincentes. Mas até aí, o trabalho de efeitos do primeiro Harry Potter contava com limitações, e nem por isso o encantamento foi prejudicado. Inclusive, se O Menino que Queria Ser Rei deixou este marmanjo completamente entretido e quase babando por mais, acredito que deva maravilhar muitos espectadores pré-adolescentes por aí, independente de limitações técnicas.

O Menino que Queria Ser Rei não é uma obra infalível e nem tão tecnicamente caprichada quanto Paddington 2, inclusive sofrendo com alguns problemas de ritmo, mas deve ocupar um posto de respeito este ano como aquela produção que, por saber tão bem com quem quer falar e como quer falar, presenteia seu público com algo distinto e deixa vestígios na memória, a afetiva e a fotográfica. Algo bastante digno de nota para um tempo no qual, para ser reconhecido ou definido como marcante, aposta-se tanto em cinismo ou ironia.

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