Crítica

Doutor Estranho 2 é o filme mais violento da Marvel e vai surpreender os fãs

Sam Raimi volta em grande estilo em Multiverso da Loucura

Quando Sam Raimi foi anunciado como diretor de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doutor Estranho 2), é seguro dizer que muitos esperavam ver boa parte da identidade da trilogia do Homem-Aranha com Tobey Maguire. É surpreendente, portanto, constatar que o que temos nesse novo filme do Mago Supremo é o Raimi de Evil Dead.

Não que a série de filmes, também conhecida como Uma Noite Alucinante, seja inferior ou algo assim, mas até então seria difícil imaginar tantos elementos do cinema de terror no Universo Cinematográfico Marvel (MCU). Raimi, contudo, conseguiu mesclar a linguagem super-heroística ao horror de forma tão orgânica, que foi capaz de criar algo verdadeiramente único dentro dessa franquia de mais de uma década.

Mas não entre na sala de cinema achando que esse é um filme de terror. Não é. O diretor utiliza elementos desse gênero deixando Doutor Estranho no Multiverso da Loucura bem no limiar junto da aventura e ação.

O terror como instrumento da narrativa

Todo o horror, de fato, está presente a fim de estabelecer a sensação de risco, que permeia toda a narrativa. Já vimos algo assim na icônica sequência de Homem-Aranha 2, quando o Doutor Octopus está na mesa de operações, os médicos tentam remover os tentáculos cibernéticos, e eles matam todos os presentes.

Esse sentimento de que todos ali estão em perigo já começa a ser construído na sequência inicial de Doutor Estranho 2, que traz um grau de violência gráfica maior do que estamos acostumados a ver no MCU – embora o que é apresentado aqui certamente não é um terço do que está presente no segundo ato do filme.

Sem a menor sombra de dúvidas, esse é o longa-metragem mais violento da Marvel, mas não de maneira gratuita. A violência é usada para fazer da antagonista alguém tão (ou até mais) ameaçadora que Thanos, visto que a vitória, em momento algum, é garantida para os mocinhos, problema que permeia a grande maioria dos filmes de heróis, mesmo os mais “sérios”.

Estabelecido esse perigo, passado o enfrentamento inicial, Raimi faz uso da costumeira estrutura do terror, que consiste na fuga do personagem titular (Benedict Cumberbatch) junto de América Chavez (Xochitl Gomez), que é perseguida por conta dos poderes dela, que a permitem viajar de um universo para o outro livremente.

Com isso, em razão da mistura de elementos de terror com aventura e ação, o longa-metragem ganha tons de O Exterminador do Futuro (os dois primeiros, não as terríveis continuações): um inimigo implacável está atrás dos mocinhos e somente no fim descobrem uma forma de resolver tudo. Até então, a luta não é pela vitória, é pela sobrevivência.

Soluções criativas

Isso não quer dizer que não existam sequências de ação como de outros longas de super-heróis, elas estão presentes, mas ganham desdobramentos e desfechos surpreendentes, o que diferencia uma da outra, mantendo um traço do Doutor Estranho original: a criatividade.

Nenhuma dessas cenas são iguais e uma delas em especial é de arrancar sorrisos do espectador pela inventividade, sendo realmente possível apenas em uma obra que gira em torno da magia.

Assim sendo, enquanto o roteiro de Michael Waldron (conhecido por Loki e Rick and Morty) segue uma premissa bastante simples, ele esbanja na forma como essa simplicidade é floreada. Isso garante a fuga da mesmice, jamais permitindo que o espectador fique entediado. Curiosamente, ao mesmo tempo que o filme não para em momento algum, a narrativa nos dá tempo para descansar e, para tal, faz uso de coadjuvantes para dar um pouco de respiro aos personagens centrais.

Naturalmente, muitos desses secundários estão presentes somente pelo velho fan service. A Marvel, ciente do sucesso de Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa, insere aqui participações especiais feitas para arrancarem gritos dos fãs. Elas não estragam a narrativa, encaixam-se dentro da proposta do filme, muito embora venham acompanhadas de diálogos expositivos.

O maior problema do texto de Waldron, de fato, é que alguns elementos introduzidos, especialmente no primeiro ato, desaparecem nos posteriores. Ideias e personagens deixados para trás sequer são citados conforme a história progride, como se o rumo tivesse mudado em meados da produção. E não falo sequer de pontas soltas para filmes futuros, visto que alguns são elementos, aparentemente, inconsequentes para o MCU como um todo, mas pertinentes ao longa-metragem em questão.

Sam Raimi nos livra da mesmice

Felizmente, são problemas menores, pequenos percalços, contrabalanceados pela direção de Sam Raimi, que vem para aliviar quem já estava cansado de diretores inexpressivos como Jon Watts, da trilogia do Homem-Aranha com Tom Holland. O aspecto de terror já foi abordado, mas há um ponto importante, que se torna cada vez menos comum em blockbusters: planos mais longos.

O diretor, junto de seus montadores, Bob Murawski (com quem trabalha desde Uma Noite Alucinante 3) e Tia Nolan, não sentem a necessidade desenfreada de cortar para a cena seguinte imediatamente, eles nos dão tempo de absorver o que acontece, fixam nas reações dos personagens, garantindo o aspecto humano da obra, além de valorizar o trabalho dos atores.

O mesmo vale para as sequências de ação, que não são picotadas. Ao contrário de tantas produções por aí, conseguimos saber o que está acontecendo, ver o que cada personagem está fazendo. Raimi, por sinal, demonstra sua autoria com chicotes, closes repentinos (outro elemento herdado dos seus filmes de terror), o velho plano ponto de vista do vilão e mais.

Tudo isso contribui para a percepção de que esse não é apenas mais um filme formulaico e sim um meio termo entre a receita de bolo da Marvel e o cinema mais autoral, tal qual vimos em Guardiões da Galáxia, com James Gunn e Thor: Ragnarok, com Taika Waititi.

Elizabeth Olsen brilha como a Feiticeira Escarlate

É claro que, para tudo isso dar certo, o trabalho do elenco principal se faz essencial.

Benedict Cumberbatch, já reprisando nos cinemas o papel pela sexta vez, demonstra estar completamente à vontade como o protagonista de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. O astro sabe muito bem transitar entre o drama, a ação e o terror, encarnando perfeitamente o lado arrogante e o mais heróico do Mago Supremo. Mesmo as tiradas mais cômicas são entregues com viés de sarcasmo, algo pertinente ao personagem. Os alívios cômicos são raros, mas presentes nas horas certas.

No entanto, quem brilha de verdade são a novata Xochitl Gomez e Elizabeth Olsen como a Feiticeira Escarlate.

Não é fácil cair de cabeça em um universo que vem sendo construído há mais de 10 anos, mas Gomez o faz sem pestanejar. Em momento algum sentimos como se estivesse fora do lugar, ou à sombra de seus colegas de elenco. Para voltar à analogia de O Exterminador do Futuro 2, ela é um John Connor que sabe muito bem se virar e se destacar na obra.

Já Olsen, que já havia recebido o devido destaque em WandaVision, novamente está em evidência em Doutor Estranho 2, que serve tanto como continuação para o primeiro longa-metragem de Stephen Strange, quanto para a série do Disney+. Vemos nela um furacão de emoções, que, por sua vez, gera todo o tipo de reação no espectador. Se ela está em tela, quem assiste certamente ficará vidrado.

Não que a trilha sonora de Danny Elfman permita, a qualquer momento, que nossa atenção seja perdida. Confesso que, à princípio, fiquei receoso com a troca de Michael Giacchino, apesar do currículo de Elfman. Felizmente, meus temores provaram ser injustificados.

Tal qual a fluidez da direção de Raimi no uso das linguagens de ação, aventura e terror, que ora se entrelaçam, ora se alternam, a trilha do compositor entende perfeitamente a atmosfera de cada cena, provocando até um ou outro susto em certos momentos.

A trilha por si só é uma grande aventura, com tons variados, que não fazem o espectador ficar cantarolando após a sessão, mas contribuem essencialmente para a imersão ao longo da experiência cinematográfica. Ele ainda respeita o que veio antes, inserindo ocasionalmente trechos do tema do Doutor Estranho de Giacchino.

Um filme de Sam Raimi

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, portanto, mais que justifica seu título, mas não da maneira como esperávamos. Ele é “louco” pela maneira como a narrativa é construída, fazendo uso do terror, aventura e ação para construir um filme inesperadamente violento, que surpreende o espectador do início ao fim.

Sam Raimi retorna ao universo dos super-heróis em grande estilo, resgatando suas origens em Evil Dead para criar um filme que ainda é um produto da Marvel Studios, mas com sua assinatura em letras garrafais.

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