Whodunnit?

Em vez de mistério, Morte no Nilo revela grande indiferença pelas personagens

Leia a crítica do filme dirigido por Kenneth Branagh

Logo nos primeiros minutos de Morte no Nilo, já temos algo muito claro em nossas mentes: Kenneth Branagh sabe filmar!

Ao contrário do esperado, não começaremos nossa história já nas areias do Egito, uma vez que o roteiro escrito por Michael Green, baseado no romance homônimo de Agatha Christie de 1937, nos leva ainda mais para o início do século passado. Estamos no meio da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) acompanhando um jovem desbigodado Hercule Poirot usando de suas incríveis habilidades para ajudar o seu pelotão no avanço contra os inimigos que se encontravam do outro lado no campo de batalha.

Nem é preciso se estender muito para concluir que a direção de ataque de Poirot foi um sucesso, assim como a direção técnica do cineasta Kenneth Branagh – também intérprete do detetive belga protagonista dessa história. Filmado em preto e branco, testemunhamos um trabalho meticuloso de Branagh em apresentar a desolação acompanhada do caos da chamada Grande Guerra em poucos minutos que foram mais que o suficiente para ter deixado uma notável primeira impressão.

Por toda à narrativa, iremos observar Kenneth Branagh sempre atento ao posicionamento, assim como para com os movimentos de sua câmera. Pena que tanto esforço e suntuosidade não fizeram a menor diferença em uma simples coisinha no que diz respeito às histórias sobre mistério: nossa capacidade de empatizar com as personagens em destaque, todas envolvidas e enroladas em uma trama de perigos aparentes e ocultos.

Em Morte no Nilo, presente nas salas de cinema pelo país, participamos das férias egípcias do detetive belga Hercule Poirot (Kenneth Branagh) a bordo de um glamoroso vapor fluvial se transformar em uma busca aterrorizante por um assassino quando a idílica lua de mel de um casal perfeito é tragicamente interrompida. Situado em uma paisagem épica de vistas arrebatadoras do deserto, além das majestosas pirâmides de Gizé, testemunhamos que este conto de paixão desenfreada e ciúme incapacitante apresenta um grupo cosmopolita de viajantes impecavelmente vestidos e repleto de reviravoltas perversas que só complicam o trabalho fora de hora do nosso herói Hercule Poirot.

Quem é o assassino?

Um ‘whodunnit’ (elisão coloquial de “Quem fez isso?”) é uma complexa variedade da ficção policial em que o enigma sobre quem cometeu o crime é o foco principal. O leitor ou espectador recebe as pistas do caso, a partir das quais a identidade do perpetrador pode ser deduzida antes que a história forneça a própria revelação em seu clímax.

Então, só que para isso é necessário acima de tudo que nos importemos com os indivíduos envolvidos nessa situação, algo que passa longe em Morte no Nilo de Kenneth Branagh. Muito disso aconteceu porque fomos apresentados às personagens (suspeitos) de uma forma um tanto distante, principalmente quando estamos pisando nas areias sagradas egípcias.

Tal frieza na apresentação é decorrente da falta de interação entre o investigador bigodudo e os acusados em questão. Nossa percepção como espectadores é baseada na mesma percepção que Poirot, só que no caso, ela mesma foi mais fundamentada por Bouc (Tom Bateman) – amigo e confidente do detetive belga – do que pela sensibilidade e intuição do próprio.

A cena onde vemos o casal apaixonado – interpretado pelos atores Gal Gadot e Armie Hammer – dançando em uma festa a bordo da embarcação a vapor fluvial junto de seus convidados, onde apenas Hercule Poirot se encontra em um nível superior da estrutura, analisando todos os elementos e seus comportamentos, sugere que o protagonista já esteja trabalhando suas deduções a respeito de quem realmente são aquelas pessoas na pista de dança, porém, também indica mais uma vez o distanciamento da figura principal para com aqueles que, pouco em breve, estarão sob alvo da investigação.

Conclusão

Kenneth Branagh repete alguns dos mesmos problemas encontrados em Assassinato no Expresso do Oriente (2017), também uma obra baseada em romance de Agatha Christie e igualmente dirigida pelo ator e diretor britânico de 61 anos de idade, como por exemplo, uma insistência aleatória em reproduzir símbolos religiosos óbvios, como a Última Ceia de Leonardo da Vinci no longa anterior, e agora, um momento no confessionário entre o investigador e seu pupilo Bouc.

Até conseguiu tirar algumas boas performances do elenco estrelado, principalmente da jovem Emma Mackey, uma das figuras principais da série da Netflix Sex Education; entretanto, o que ficou de Morte no Nilo foi a indiferença em relação a tudo aquilo que vimos, das personagens aos cenários criados pela equipe de efeitos visuais.

Sempre lembrando que um dos principais ingredientes de uma trama de mistérios escrito por Agatha Christie é a irreverência dos fatos decorrentes na investigação do acontecido, algo que nunca se fará presente neste trabalho de Kenneth Branagh, que ficou mais próximo de Murderville (nova série da Netflix) do que o excelente e muito divertido Entre Facas e Segredos (2019) de Rian Johnson.

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