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Em entrevista exclusiva, Fernando Meirelles dispara: "Tenho pena dos estúdios que tem que competir com a Netflix"

Por Fernando Berenguel

Nos últimos anos, alguns detalhes passaram a fazer uma grande diferença tanto na carreira do cineasta brasileiro Fernando Meirelles quanto na bagagem da O2 Filmes, produtora da qual ele é sócio. No ano passado, as mensagens ecológicas e patriotas dirigidas por Meirelles foram assistidas por mais de três bilhões de pessoas na abertura das Olimpíadas do Rio. O cineasta foi o diretor da cerimônia de abertura ao lado dos nomes de Andrucha Waddington e Daniela Thomas.

Já sua produtora recentemente foi responsável por sucessos televisivos como Felizes Para Sempre, série indicada ao prêmio APCA e que rendeu centenas de comentários e memes na web após a sequência onde uma garota de programa de luxo interpretada por Paola Oliveira exibir sua derrière. Outro sucesso foi a série Os Experientes cuja 2ª temporada atualmente está em fase de pré-produção e que chegou a ser indicada ao Emmy Internacional no ano passado. “A TV hoje é mais interessante que o cinema” era o mantra do diretor em suas entrevistas nos últimos tempos. É que apesar de ter sido na indústria do cinema que o nome do brasileiro despontou para o mundo, com Meirelles chegando a dirigir projetos que acumulam 8 indicações ao Oscar (4 por Cidade de Deus e outras 4 por Jardineiro Fiel), o cineasta não tem mais aquele entusiasmo de antigamente com a grande tela. Em entrevistas recentes, revela que tem ido muito pouco ao cinema preferindo assistir filmes pela televisão e até pela tela do computador.

Talvez seja exatamente esta uma das razões pela qual o diretor tenha topado dirigir seu próximo filme para a Netflix. Depois de cinco anos longe do cinema, desde que dirigiu o filme 360 com Anthony Hopkins, Meirelles parece ter encontrado uma segura parceria ao lado da Netflix e seu eficaz modelo de distribuição de conteúdo com alcance mundial. Esta entrevista inclusive, foi feita por uma troca de emails enquanto o cineasta está na Argentina rodando as cenas do The Pope, filme que será lançado no próximo ano sobre o Papa Bento XVI e sobre o Papa Francisco. Para os fãs de cinema, Meirelles promete compartilhar um diário de produção com o dia a dia das filmagens sendo dividido com os leitores através de relatos no site da O2 Filmes (assim como aconteceu entre os anos de 2007 e 2008 durante as filmagens de Ensaio Sobre A Cegueira). Nesta entrevista, o cineasta comentou inclusive os supostos abusos sexuais cometidos por Harvey Weinstein, o produtor que foi um dos maiores responsáveis pela carreira internacional de Cidade de Deus. Confira:

Observatório do Cinema: Recentemente o mercado de produção audiovisual brasileiro passou a se assemelhar ao padrão norte-americano com as emissoras diminuindo a produção e comprando conteúdo de produtoras independentes cada vez mais (com produtoras chegando inclusive a produzir novelas). As emissoras brasileiras podem passar a ser essencialmente distribuidoras de conteúdo?

Fernando Meirelles: Pelo tamanho das estruturas das redes de TV aqui, acho que vai ser difícil vê-las só como distribuidoras, mas algo vem mudando de fato, falo por experiência própria.A O2 Filmes, produtora da qual sou sócio, ha tempos faz projetos para a Globo e eram séries que partiam de idéias nossas, como Cidade dos Homens, Som e Fúria, Experientes e outros. Agora há um novo modelo surgindo, eles desenvolvem o projetos internamente e contratam produtoras independentes para realizá-los. A O2 Filmes já fez três séries para a Globo neste sistema, a última foi Vade Retro. O mesmo acontece com a HBO e com outos canais que são parceiros. Este mercado é dinâmico e tem se reinventado, talvez por isso, a taxa de crescimento do audiovisual no Brasil na última década não tenha paralelo em outros setores da economia.

A minissérie Felizes Para Sempre, produzida pela O2 Filmes
A minissérie Felizes Para Sempre, produzida pela O2 Filmes

OC: Nos quase 26 anos de empresa, a O2 foi responsável pela produção de cerca de 30 séries televisivas. Mais da metade destas foram lançadas nos últimos 6 anos devido a Lei do Audiovisual que obrigou os canais de TV a cabo a exibirem pelo menos 3 horas de conteúdo nacional. Qual a expectativa para o mercado de produção nos próximos anos?

FM:  Estas leis foram grandes acertos. O audiovisual não é como mineração ou o agronegócio que concentram os lucros. O investimento em produção espalha seus recursos em uma cadeia enorme de setores de serviço, lida com invenção e tecnologia e demanda qualificação de mão de obra. Mas mais importante que isso, a produção que vem daí dá cara e nos ajuda a pensar o país. Viajo muito e fico sempre surpreso ao ver como as TVs em muitos países desenvolvidos são pobres e não espelham a riqueza cultural local. Aí ligo a TV no Brasil e me vejo ali. Tente assistir TV na Itália ou na Alemanha para entender o que digo. Se o Congresso tiver o bom senso de preservar a lei de obrigatoriedade de exibição de conteúdo nacional ou a lei do Audiovisual, mesmo que reformulada, esta será uma área ainda mais promissora pois o consumo de conteúdo nunca foi tão alto e o número de telas no Brasil e no mundo só cresce. Para a saúde do planeta, consumir conhecimento, educação e conteúdo é muito melhor do que consumir bens. Informação não esgota recursos naturais e nem aquece a Terra. É para onde a economia deveria apontar.

OC: Dos pontos de vista de qualidade técnica, financiamento e produção quais são as principais diferenças entre produzir um filme em parceria com um grande estúdio e produzir com a Netflix?

FM: A relação com a Netflix tem sido parecida com a relação com outros estúdios, mas sem a interferência da área de marketing. Eles entendem de filmes. Todas as contribuições que deram no roteiro ou na produção ajudaram o projeto. O que mais me impressiona no modelo deles é como decidem o que vão produzir e como planejam os lançamentos. Ali não se trabalha com a intuição de um executivo para saber o que pode dar certo. Não precisam disso.

Eles têm uma ferramenta preciosa que é a informação sobre os gostos de seus 100 milhões de assinantes. Big Data. Sabem que filmes cada um viu, que filmes abandonaram no meio e em que cena, se viram no celular, no Ipad ou na TV e em quantas vezes. Sabem que trailers cada cliente assistiu, quanto tempo levaram entre um episódio e outro de uma série, onde foi dado fast-forward ou pausa, quanto tempo depois o filme foi retomado e tudo mais. Com estes dados, os algoritmos não só indicam o tipo de filme a ser produzido para cada tipo de assinante, mas também como lançá-los. Estas informações estão disponíveis no Google. Para cada projeto montam uma dezena de trailers, de pôsters e de peças de promoção que são entregues sob-medida para cada assinante. Se eu gosto de um ator e ele está num filme, recebo um pôster ou um trailer com a sua cara, mesmo que ele não seja o protagonista. Certamente este filme sobre o Papa que estou fazendo e para o qual fui convidado, deve ter nascido de uma demanda entre os 1.2 bilhões de católicos que são assinantes. Talvez muitos deles sejam da América Latina pois estou podendo fazer uma parte do filme em espanhol. Ter um diretor latino americano também pode ter sido uma escolha do algoritmo. Ou ja estou sendo meio paranóico aqui?

Tenho pena dos estúdios que precisam competir com isso e ainda dependem da intuição do chefe. Sem chances.

Do meu lado, fico feliz em saber que não haverá meses de promoção para lançamento e que nunca ficarei sabendo se o filme foi um sucesso ou um fracasso. Um mundo novo que estou gostando de conhecer.

Fernando Meirelles (centro) no Festival de Cannes em 2008

OC: No Festival de Cannes deste ano foi divulgado um manifesto de cineastas como Michael Haneke, Wim Wenders e dos Irmãos Dardenne pedindo pela criação de cotas para filmes europeus nos serviços de streaming como Netflix, Hulu e Amazon. Ideias como esta podem ser uma nova solução para realizadores (inclusive brasileiros) conseguirem maior audiência e lucro?

FM: Na Netflix, Hulu e Amazon não há o conceito de audiência e lucro, o que importa é quantos assinantes um filme ajudou a agregar. Ninguém liga muito para quanto o filme fez no primeiro final de semana e não há participação nos lucros pois não há bilheteria. É outra lógica.

Acho a reivindicação dos colegas/ídolos muito positiva e justa, mas acredito que ao menos a Netflix já esteja fazendo este movimento. Enquanto estou filmando este longa na Argentina e na Itália, sei que Paul Greengrass está começando a rodar um longa para eles na Noruega com elenco local. Eles definitivamente pensam global.

OC: No mesmo festival, o diretor Almodóvar criticou a distribuição de OKJA pelo fato do filme em competição não ter sido exibido especialmente nas telas de cinema. Filmes distribuídos somente através da Netflix devem participar de competições em festivais tradicionais de cinema?

FM: Claro que sim. Um filme não deixa de ser um filme por ser exibido em outra janela. Quando a Netflix lançou o sensacional “Beasts of No Nation”, algumas redes de cinema nos EUA boicotaram o filme por achar que a concorrência do lançamento simultâneo era desleal e era mesmo. Mas não tem jeito. Eles então resolveram montar salas e fazer acordos com redes para criar o próprio circuito, talvez para deixar claro que o que fazem é cinema sim. Este filme que estou rodando aqui na Argentina será lançado nestas salas poucos dias antes do lançamento na TV, mas certamente a receita que interessa a eles vem dos assinantes e não da bilheteria. O fato é que o negócio todo já mudou. As salas de cinema, apesar de nos darem a experiência única de compartilhar uma espécie de sonho coletivo, tendem a virar uma janela residual para a industria, salvo os filmes-eventos. No mundo todo a frequência de salas vem caindo. Nos EUA e Canadá, a receita de salas cresceu um pouco em 2016 mas a venda de ingressos caiu. O faturamento cresceu porque os ingressos ficaram mais caros. Sabemos que há esta migração da audiência, principalmente da jovem, da tela grande para as telas pequenas e das salas escuras para qualquer lugar, até dentro do ônibus. Esta crise de público no cinema brasileiro não é um momento que estamos passando, mas uma tendência no mundo. A boa notícia é que nunca houve tantas telas no mundo e tanto consumo de conteúdo, então a questão é sabermos como responder a esta inexorável mudança, aonde e como contar nossas histórias. Até hoje há gente que faz xilogravuras, o que me leva a crer que sempre haverá espaço para filmes, até para os filmes rodados em película, que aliás é uma nova onda fora do Brasil. Tomara que eu esteja certo pois uma obra que nasça de um insight da cabeça de um ser humano sempre será uma espécie de resistência a este mundo onde as decisões partem de algoritmos, este mundo no qual me encontro no momento.

O trio da nova série da Netflix: Anthony Hopkins, Fernando Meirelles e Jonathan Pryce

OC: Antes da escalação de Jonathan Pryce para o papel do Papa Francisco em The Pope muito se comentava sobre a semelhança física do ator (que interpretava o “Alto Pardal” em Game Of Thrones) com a autoridade máxima da igreja católica. Você chegou a assistir às cenas do ator na série? Sabia destas comparações entre a fisionomia dos dois?

FM: Sim, a semelhança entre os dois não era uma condição si ne qua non, mas vai ajudar a audiência a ver o Cardeal Bergoglio encarnado no ator. Pryce tem também a leveza e o senso de humor que identificamos no Papa Francisco. Estas coisas ajudam.

OC: Esta é sua segunda parceria com Anthony Hopkins. O que te levou a escalar o ator novamente?

FM: Sou um fã. Hopkins tem presença e autoridade, mesmo sendo um homem de poucos gestos e de fala mansa. O Papa Bento XVI, que ele interpreta, é igual. Assim como o Papa, ele também é culto e profundo. Claro que é um grande ator e poderia fazer qualquer papel, mas, como no caso de Pryce, essas semelhanças ajudam. Seu interesse pelo filme foi pelo roteiro lidar com questões da fé, ou da nossa conexão com realidades que vão além do nosso mundo do dia a dia. Ele diz ter tido algumas experiências fortes nesta área e o tema o mobiliza.

OC: As personalidades dos dois Papas foram assunto da imprensa mundial principalmente nos primeiros meses do papado de Francisco em 2013. O roteiro de Anthony McCarten aborda esta personalidade mais reservada de Bento XVI e a postura mais aberta do Papa?

FM: Sim, mas apesar das personalidades opostas serem ótimas para se criar drama, aos poucos fui percebendo que as diferenças entre os dois não é tão oposta quanto imaginei no início. É uma diferença mais de estilo. Até onde eu entendi, Bento XVI é mais adepto de uma igreja que deve apontar o caminho para o mundo, olhando para além do mundo, enquanto Francisco opta por caminhar ouvindo e trocando com o mundo. Fora isso a fé e a doutrina de ambos me parece ser a mesma. O Papa Francisco é uma das vozes mais interessantes no mundo hoje e como dirige uma das mais antigas e a maior instituição do planeta, sua voz é ouvida. É impressionante ver como ele consegue ser contundente politicamente, atacando duramente o sistema econômico e o consumismo que destrói o planeta, mas ao mesmo tempo centrar seu discurso na ideia do perdão, da misericórdia e do amor ao próximo, valores cada vez mais raros nesta era digital de odiares anônimos.

Harvey Weinstein

OC: Recentemente uma onda de revelações sobre abusos sexuais na indústria do entretenimento colocaram a carreira de profissionais consagrados em xeque. Desde pessoas como o diretor dinamarquês Lars Von Trier a um Kevin Spacey bêbado e na época com apenas vinte e poucos anos, muitas personalidades foram criticadas. Um dos nomes mais citados nestes casos é o do produtor Harvey Weinstein, que foi um dos entusiastas da carreira internacional de Cidade de Deus. Esta antiga fama dele de abusador ou as investidas dele em atrizes chegaram a ser citadas na época de lançamento do filme brasileiro nos mercados internacionais?

FM: Sim. Cheguei a escutar conversas onde se faziam estas acusações contra Harvey. Pela sua personalidade “poderosa” sentia que poderia ter algum fundamento, mas sou absolutamente avesso a fofocas então nunca tentava saber mais sobre o assunto quando ouvia a conversa. No Brasil há também muitas histórias sobre o famoso “teste do sofá”. É uma opção das vítimas falar ou não sobre isso. Apesar deste movimento de denúncias correr o risco de virar uma espécie de macartismo e passar do ponto, como já andou acontecendo, esta repercussão vai ajudar a mudar nossa cultura de tolerância ao assédio e isso é bom

OC: Mesmo com alguns sucessos isolados principalmente de comédias, o cinema brasileiro ainda encontra impasses nas bilheterias. Suas décadas de cinema e sua recente experiência no comitê artístico na Globo Filmes lhe deram alguma direção de como fazer o cinema nacional alcançar uma melhor arrecadação no país?

FM: Aumentar o número de salas certamente faria com que os números melhorassem. Quase não ha salas em cidades com menos de 100 mil habitantes no país. A experiência das 20 salas da prefeitura de São Paulo, o Circuito SPCine, também é uma bola dentro e esta idéia poderia se espalhar pelo Brasil. Estimular o hábito de assistir filmes é sempre bom já que por aqui lê-se tão pouco. Agora, vamos sempre lembrar que a bilheteria não é mais um bom padrão para se avaliar o sucesso de um filme. A Globo Filmes tem vários casos de longa brasileiros que foram mal nas salas mas bateram blockbusters americanos no mesmo horário na TV.

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