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Narcos: México | Crítica

Quando Narcos começou muitos pensaram se tratar de uma série exclusivamente sobre Pablo Escobar e por duas temporadas a série manteve esse foco. Qualquer um que conhecesse a história do traficante, no entanto, já saberia que, para sobreviver, o seriado da Netflix invariavelmente precisaria trazer as histórias de outros nomes ligados ao narcotráfico – começamos a trama da primeira temporada já no fim da história de Escobar, afinal. Eis que veio a terceira temporada e a obra provou ser capaz de sobreviver sem o homem vivido por Wagner Moura. Mas é através de Narcos: México que vemos a maior alteração na estrutura da série.

Essencialmente, trata-se de um spin-off, uma série derivada, ideia fortalecida pela própria divisão no catálogo da Netflix, que não coloca essa história como a quarta temporada de Narcos. A própria trama não dá continuidade aos eventos que acompanhamos nos três anos da original – a história que vemos aqui até começa um pouco antes dos primeiros episódios da série com Escobar, isso sem falar na óbvia mudança de cenário. Mais do que isso, o seriado assume um tom levemente diferenciado, o que garante a identidade dessa nova obra, que também foi criada pelo trio formado por Carlo Bernard, Chris Brancato e Doug Miro.

Narcos: México foca prioritariamente em Miguel Ángel Félix Gallardo (Diego Luna), o idealizador e criador do primeiro Cartel de drogas mexicano, que iniciou seus negócios especificamente com a maconha, antes de passar para a cocaína. Logo nos primeiros episódios já vemos a substancial diferença entre Miguel e Pablo. Esse novo protagonista é um homem de negócios, a violência ainda existe, claro – ora velada, ora explícita – mas seu método é outro, ele trabalha principalmente através de acordos, subornos, criando uma aliança em que todos enxergam o óbvio: sem Miguel, eles não ganham dinheiro. Assim sendo, essa temporada trabalha com a dinâmica desses acordos, com seus obstáculos e como tudo pode cair por terra graças a pequenas brigas e ganância.

Outro grande foco, ainda que a ênfase permaneça claramente no traficante, é em Enrique ‘Kiki’ Camarena (Michael Peña), um agente da DEA que pediu para ser transferido para o México, apenas para descobrir que simplesmente nada funciona por lá. E por que isso? Pois todos – digo, todos mesmo – estão nos bolsos dos criminosos, até mesmo a força especial criada especificamente para combater os traficantes. É um cenário desesperador, regido pela burocracia e impossibilidade de qualquer tipo de ação. Naturalmente que Camarena toma como missão pessoal mudar isso.

Ainda que vejamos as tentativas falhas dos agentes da DEA em tentar prender Miguel – isso é, quando descobrem que ele está por trás de tudo – o roteiro sabiamente consegue se esquivar da dinâmica de gato e rato na maior parte do tempo, esquivando-se da repetitividade que seria invariavelmente causada pelo excesso de tentativas frustradas de Camarena e seus colegas. Narcos: México estabelece a tensão da narrativa através de diversas fontes – por vezes uma tensa reunião entre duas partes, outras com a expectativa de algo dê errado – com isso, os problemas dos personagens centrais se mantém constantes, mas cada um deles soa diferente o suficiente para que a trama seja renovada com bastante frequência.

Mais importante ainda é que isso cria a sensação de que tudo está evoluindo, tanto os personagens, quanto seus negócios. O Miguel que conhecemos nos primeiros episódios não é o mesmo do fim da temporada, embora ele pareça o mesmo, enxergamos claramente que esse negócio o engoliu por completo e o mesmo vale para Camarena e os personagens secundários. Existe, no entanto, um problema na forma específica como alguns desses indivíduos mudam. Com a inserção de constantes saltos temporais menores, não chegamos a ver a transição propriamente dita e, algumas vezes, a mudança ocorre da água para o vinho – quando piscamos, o relacionamento entre dois personagens já não é mais o mesmo, o que acaba transmitindo certa artificialidade na trama como um todo, passando a impressão de estarmos assistindo mais um grande resumo do que uma cuidadosa narrativa propriamente dita.

Bom exemplo disso é a relação entre Rafa (Tenoch Huerta) e Miguel, que deteriora muito rapidamente. Mas há um lado bom. De forma explícita, o roteiro assume sua inspiração em Scarface, de Brian de Palma, retratando toda essa relação e a própria ascensão e queda de Félix Gallardo como a trajetória de Tony Montana (Al Pacino) e Manny (Steven Bauer). Por vezes esses paralelos se misturam, e Rafa chega a assumir aspectos de Tony, mas, de forma mais geral, temos quase uma releitura do clássico oitentista, inclusive no que diz respeito ao isolamento do protagonista, o tráfico de drogas e sua crescente influência.

Naturalmente que há uma grande diferença nos personagens de Diego Luna e o de Al Pacino em Scarface. Como dito antes, Miguel é mais um homem de negócios e Luna trabalha isso plenamente. Vemos a frustração em seu rosto diversas vezes, a luta interna para simplesmente não explodir tudo e todos (literalmente ou não), seu autocontrole vem a certo custo e o peso que recai sobre seus ombros aparece claramente nas expressões e na própria linguagem corporal do ator, que, cada vez mais, parece mais cansado e impaciente. Isso aparece até mesmo nos diálogos, que passam a ser mais curtos com o personagem de Luna, tudo enquanto ele se fecha mais e mais, por vezes deixando transparecer sua verdadeira vontade por trás do que é dito ou não dito.

Michael Peña também cumpre seu papel, embora seja consideravelmente mais limitado em atuação que Luna. Sim, seu papel pede menos, bem menos e felizmente nos livramos do “bom mocismo” do agente Murphy das duas primeiras temporadas de Narcos. Camarena é mais humano, mas Peña nunca dá um show de atuação, ele simplesmente faz o que precisa e funciona, mas sem conseguir o devido destaque. Nesse quesito sentimos falta do personagem vivido por Pedro Pascal – o carisma em pessoa – mas nada que afete a série muito negativamente, o que realmente causa é que passamos a torcer mais pelos bandidos – embora saibamos os impactos monstruosos das ações de Miguel e sua trupe.

É esse impacto que esperamos ver em futuras temporadas da série – se elas existirem. O que vimos aqui em Narcos: México foi o início de tudo, a formação do primeiro Cartel e as comportas foram abertas para que o seriado da Netflix se estenda até os dias atuais. Pela própria escalada da violência e a diferente postura dos EUA a cada ano, a série tem a boa chance de se renovar a cada temporada, isso sem falar na possibilidade de mudar o foco constantemente: afinal, não faltam traficantes cujas histórias podem ser contadas. Por enquanto, a série mais uma vez provou ser capaz de sobreviver sem Escobar, contando a fascinante trajetória de Miguel Ángel Félix Gallardo, com um Diego Luna que é mais do que capaz de nos manter atraídos por essa produção. A Netflix acertou mais uma vez e realmente esperamos poder ver mais dessas histórias.

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