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Será que a Globo ainda sabe fazer novela das 9?

A Rede Globo ainda é referência quando falamos de novelas – e não só dentro do país. Avenida Brasil, por exemplo, foi exportada para 130 países, tornando-se a novela global mais vendida da história. De fato, há pouco tempo a Record esboçou ameaças com Os 10 Mandamentos, o que acabou não se concretizando, e o SBT continua exibindo A Usurpadora (pela sétima vez), o que nem de longe arranha a soberania da maior emissora do país.

Mas para tal título, até que a Globo vem cometendo diversos deslizes. Salvo poucas exceções, a emissora acumula críticas e quedas de audiências drásticas nas suas novelas, principalmente no horário nobre, considerada geralmente o carro-chefe das novelas. Teria a Globo perdido a mão?

Novos tempos e abordagens erradas

A resposta mais direta para a pergunta anterior seria que não, a globo não perdeu a mão para fazer novelas. Nada do que a emissora produz é descompromissado, mantendo sempre um alto padrão de qualidade técnica. E talvez esse seja o primeiro ponto preocupante dos últimos tempos: a qualidade exclusivamente técnica.

Basta uma rápida pesquisa e descobrimos que não existe nenhuma novela com menos de 23 anos que tenha alcançado o top 10 das maiores audiências da Globo. Não importa o quanto nos apaixonamos por vilãs como Nazaré Tedesco, de Senhora Do Destino, ou Flora, de A Favorita: nenhuma dessas novelas bate, por exemplo, as audiências de Top Model (1990, com 64 pontos no IBOPE) ou Roque Santeiro (1986, com 67 pontos no IBOPE, o maior recorde da emissora).

Roque Santeiro
Roque Santeiro

Dos dados acima, podemos chegar a algumas conclusões. O público que acompanhou os sucessos de audiência do passado não é mais exclusivo. Diversas pessoas que dedicam tempo para assistir à novela das nove não têm idade para se lembrar de tais produções, de modo que a emissora precisa se adaptar a elas. Os tempos mudaram, e a Globo precisa acompanhar tais mudanças. Dessa forma, podemos dividir a responsabilidade pelo fracasso de tais novelas em dois culpados: a emissora e o público.

É preciso lembrar que o jovem de hoje não tem mais apenas a televisão como distração. A ascensão da TV por assinatura e principalmente da internet competem de igual para igual com a televisão nacional, fazendo uma boa parcela da população, principalmente os mais novos, procurar entretenimento em outras plataformas, criando uma geração que não aceita menos do que o padrão internacional, proporcionado pelos meios digitais.

Por outro lado, a Globo não está sabendo, há um bom tempo, adaptar-se aos novos tempos. Há uma busca incessante dos produtores em retratar a realidade crua nas novelas, e nem sempre isso funciona. Em tempos líquidos e efêmeros, as novelas acabam tão fúteis quanto. Assim, enquanto entretenimento, quando teremos a oportunidade de fugir da realidade?

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Foi o caso, por exemplo, de Viver a Vida (2009). A novela de Manoel Carlos contou a história de uma bela garota que precisa lidar com o fato de se tornar cadeirante. Por mais que seja um drama real, isso não atinge o grande público: a protagonista era rica e tinha inúmeras oportunidades de tratamentos e possibilidades de recuperação (ainda que não se recupere na trama), o que não condiz com a realidade de grande parte dos brasileiros que convivem com a cadeira de rodas. O que mais um paralítico sem as mesmas oportunidades sentiria ao assistir aos mimos da personagem que ainda reclamava com toda a sua fortuna, se não rancor?

Salve Jorge (2013) e Babilônia (2015) nos dão outro exemplo do desespero da emissora em atingir o público a todo custo. Ambas prometiam grandes tramas, tão grandes que se perderam. Enquanto a primeira tratava de tráfico ilegal de mulheres para prostituição no exterior, a segunda apelava para o fator “vilã implacável” estilo Odete Roitman e Nazaré Tedesco, que geralmente sempre funciona. Ambas falharam em sua megalomania, exibindo atuações fracas e sem carisma, que tentavam se apoiar em enredos que não eram lineares ou minimamente decentes. De nada adianta tentar criar uma história apoteótica se os personagens são mal trabalhados, e isso vem acontecendo com frequência.

A própria A Lei do Amor, atual das nove, peca exatamente nisso: prometendo uma grande trama, acaba incluindo diversos subtemas desnecessários que não conversam entre si com muita fluidez, tirando o foco de uma vilã que tinha tudo para ser implacável e desperdiçando grandes atores em papéis secundários, como a impecável Cláudia Raia, que interpreta a dona de um posto de gasolina que participa de um núcleo que por pouco não possui relação nenhuma com o resto da novela.

Em suma, falta carisma. De monotonia, já basta a vida.

Elenco de Salve Jorge.

Ode ao passado

Claro, nem tudo foi deplorável nos últimos anos. Ainda que não se consolidem no top 10 de maiores audiências, algumas novelas alcançaram certo prestígio nos últimos tempos. Senhora do Destino, de Aguinaldo Silva, por exemplo, além da já citada Nazaré Tedesco (Renata Sorrah), contava a história de Maria do Carmo (a grande Susana Vieira), uma retirante que, ao estilo Vidas Secas, migra para o sudeste para fugir da pobreza e da seca, e constrói uma vida do zero. Quem nunca conheceu alguém com essa trajetória? O que haveria de mais brasileiro?

Silva também escreveu Império (2015, que contava com uma fotográfica impecável) e Duas Caras (2008), que conseguiu certa repercussão nos momentos finais. Coincidentemente ou não, Silva foi o mesmo que emplacou quatro das 10 novelas com maior audiência de todos os tempos: Tieta (1990), Pedra Sobre Pedra (1992), Fera Ferida (1994) e Vale Tudo (1989).

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Avenida Brasil (2012), de João Emanuel Carneiro, também foi outro sucesso. Partiu da premissa “garota pobre que fica rica e busca vingança”, dando de bandeja ao público duas personagens que brigavam como gato e rato, com atuações que cresceram ao longo dos 179 capítulos.

Mas nada se compara a Velho Chico (2016), que representou um fenômeno atípico. Sua trama fugia completamente de tudo o que a Globo fez por anos. Longe de São Paulo ou do glamour do Rio, que é tão longe da realidade, a trama de Benedito Ruy Barbosa se passava no nordeste brasileiro, banhado pelo Rio São Francisco. Tudo na novela nos remetia ao passado. Contada ao longo de gerações, misturando o romance proibido com misticismo, tinha um quê de Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez) e Pantanal (1990), também de Barbosa, sucesso estrondoso exibido ainda na TV Manchete.

Além da qualidade técnica, que sabemos que a Globo tem de sobra (Velho Chico apresentou uma fotografia e figurinos dignos de cinema, aliados a grandes atuações – Christiane Torloni, Camila Pitanga e Selma Egrei mandam lembranças), a trama conseguiu unir temas como preservação ambiental, a realidade dura do agreste e, seu ponto alto, o sincretismo religioso e a riqueza da cultura brasileira. A trilha sonora foi outro espetáculo à parte. As composições de Tim Rescala uniam o erudito ao regional, muito ao estilo Villa Lobos, e o resultado foi um CD com 27 trilhas dignas de Hollywood.

Velho Chico

Velho Chico foi um sopro de ar fresco na mesmice global. Tirou-nos de nossa monotonia da vida real, nos apresentou algo que não tínhamos no dia a dia e cumpriu sua função de entreter. Fez bem aos olhos e ao coração, e nos lembrou de que a Globo ainda sabe o que faz.

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O futuro

De tempos para cá, a Globo vem adotando a “novela das onze”. Desde O Astro (2011), procura criar uma trama por ano para complementar o horário. Com menos capítulos que o habitual (média de 60 por novela), a emissora se dá o luxo de gastar mais. Assim, a fins de comparação, temos às 23h tudo o que os sucessos de 20 anos atrás nos apresentavam às 20h: histórias bem trabalhadas com personagens fortes e uma produção impecável.

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A faixa das 23h nos lembra de que não necessariamente precisamos de uma vilã icônica para cair nas graças do povo. Verdades Secretas (2015), e Gabriela (2012), por exemplo, conseguiram ser grandes sucessos sem este tipo de apelo. Este é o momento que a Globo ignora ao máximo as futilidades do Leblon ou os escritórios de empresários ricos de São Paulo e dão espaço ao que realmente importa: tramas que envolvam, de maneira forte, os sentimentos humanos. Temos, então, o amor, o ódio, os vícios, as fraquezas e tudo o mais na sua forma mais crua.

Resta saber, agora, qual o caminho a maior emissora do país vai seguir. Continuar tentando cativar o público com uma réplica monótona da vida nas novelas das nove não vai funcionar por muito tempo. É imprescindível que a Rede Globo traga toda a audácia das 23h para seu horário mais tradicional, ou que entregue de uma vez os pontos das novelas das nove pra se dedicar com mais afinco às novelas mais tardias – mais curtas, sim, porém mais dignas de serem assistidas.

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